Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Publicou, entre outros, os livros de poesia Martelo (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1997), Desassombro (Famalicão, Quasi 2001; Rio de Janeiro, 7 Letras, 2002 - Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional, melhor livro de poesia de 2002), Rua do mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2004) e Cinemateca (São Paulo, Companhia das Letras, 2008). Organizou, entre outros, Letra Só, seleção de letras de Caetano Veloso, editado em Portugal (Famalicão, Quasi, 2002) e no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 2003), o volume de Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2004) e a antologia Veneno antimonotonia (Rio de Janeiro, Objetiva, 2005) e O mundo não é chato, livro de textos em prosa de Caetano Veloso (São Paulo, Companhia das Letras, 2005). É professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Collage 1, Andrew Topel, Rushville, IL - USA
TRAÇO
Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.
No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.
Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.
Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.
Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.
Obra de Beatriz Milhazes
A LEITORA
Ali está ela, atenta.
Mas, repara: lê
como se levitasse.
O escrito pouco importa.
É como se não lesse. Imagine:
uma língua tão estrangeira
que ela não reconhecesse,
não soubesse qual e,
serena, não dá por isso.
Ou mais que:
não lê. Vê
as páginas,
como se da janela
a paisagem
e pousasse os olhos
na orla das páginas
sem saber
onde vão as palavras.
Frui, tão-só,
a pele, o almíscar,
a árvore
que o livro foi um dia.
Obra de Beatriz Milhazes
VERDE-CLARO
Coroa, manto, brasão
e cetro, pousa.
Minúsculo,
só, nenhum exército.
Seu domínio: o ar,
onde governa em silêncio.
Não sei que nome tem,
insigne inseto,
senhor de toda beleza.
Chamem-no alteza.
Obra de Beatriz Milhazes
O ATOR
Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,
embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:
nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza
que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos
em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,
sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.
Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.
Obra de Beatriz Milhazes
PAISAGEM PARA ANNA AKHMÁTOVA
O corpo, ainda corpo,
sabe de cor
a dor. Dizer adeus,
carpir, esconder,
bater palavras contra o muro.
Ruas de São Petersburgo
sob a neblina - o corpo
sabe de cor
onde se morre.
Mas, por entre o estridor
de soldados e funcionários,
cava uma saída:
o próximo poema
(promessa de delicadeza e silêncio)
- ouve cantar uma cereja.
Obra de Beatriz Milhazes
CABAL
Desabotoa-se por fim a cena
que se desenhava no baço
da janela do sonho (o sonho
é uma espécie de vidraça?)
e tudo o que se realiza vive
da necessidade, agora que
o motor do instante se agita
e vibra sua perfeição. Enfim,
vem à luz a experiência que
se vinha elaborando no laboratório
de algum andar do sonho (o sonho
é uma espécie de edifício?):
o mar nasce de amar, e águas
sem margem usurpam a cidade,
arrastam inocentes. Os amantes
gozam, é justo que seja assim.
Obra de Beatriz Milhazes
PRESTO
Os dias despencam
aos pedaços. Logo será janeiro.
Posso farejar o amarelo das amendoeiras
de então (amarelas como teu cabelo)
e a praia, os bares, a ferrugem, nossas costas
e braços liquefeitos. Tanto faz a solidão,
a companhia: tudo são doenças tropicais,
incuráveis. O verão virá, forasteiro,
no vôo tonto, nupcial dos cupins
em volta das lâmpadas. Janeiro
está próximo, pressinto seu peso, a alegria,
o tremor, a sezão, o óleo,
a girândola veloz dos relógios
a nos golpear no ventre. Girassóis
em bando assestarão suas lâminas
em direção aos táxis
enquanto os rios, erráticos, desaguarão
à porta dos edifícios da Senador Vergueiro.
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