sábado, 27 de novembro de 2010

Poeta Eucanaã Ferraz

Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. Publicou, entre outros, os livros de poesia Martelo (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1997), Desassombro (Famalicão, Quasi 2001; Rio de Janeiro, 7 Letras, 2002 - Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional, melhor livro de poesia de 2002), Rua do mundo (São Paulo, Companhia das Letras, 2004) e Cinemateca (São Paulo, Companhia das Letras, 2008). Organizou, entre outros, Letra Só, seleção de letras de Caetano Veloso, editado em Portugal (Famalicão, Quasi, 2002) e no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 2003), o volume de Poesia completa e prosa de Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2004) e a antologia Veneno antimonotonia (Rio de Janeiro, Objetiva, 2005) e O mundo não é chato, livro de textos em prosa de Caetano Veloso (São Paulo, Companhia das Letras, 2005). É professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

























Collage 1, Andrew Topel, Rushville, IL - USA


TRAÇO

Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.









Obra de Beatriz Milhazes


A LEITORA

Ali está ela, atenta.
Mas, repara: lê

como se levitasse.
O escrito pouco importa.

É como se não lesse. Imagine:
uma língua tão estrangeira

que ela não reconhecesse,
não soubesse qual e,

serena, não dá por isso.
Ou mais que:

não lê. Vê
as páginas,

como se da janela
a paisagem

e pousasse os olhos
na orla das páginas

sem saber
onde vão as palavras.

Frui, tão-só,
a pele, o almíscar,

a árvore
que o livro foi um dia.











Obra de Beatriz Milhazes


VERDE-CLARO

Coroa, manto, brasão
e cetro, pousa.

Minúsculo,
só, nenhum exército.

Seu domínio: o ar,
onde governa em silêncio.

Não sei que nome tem,
insigne inseto,

senhor de toda beleza.
Chamem-no alteza.










Obra de Beatriz Milhazes


O ATOR

Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,

embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:

nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza

que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos

em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,

sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.










Obra de Beatriz Milhazes



PAISAGEM PARA ANNA AKHMÁTOVA

O corpo, ainda corpo,
sabe de cor
a dor. Dizer adeus,
carpir, esconder,
bater palavras contra o muro.
Ruas de São Petersburgo
sob a neblina - o corpo
sabe de cor
onde se morre.
Mas, por entre o estridor
de soldados e funcionários,
cava uma saída:
o próximo poema
(promessa de delicadeza e silêncio)
- ouve cantar uma cereja.









Obra de Beatriz Milhazes



CABAL

Desabotoa-se por fim a cena
que se desenhava no baço
da janela do sonho (o sonho
é uma espécie de vidraça?)

e tudo o que se realiza vive
da necessidade, agora que
o motor do instante se agita
e vibra sua perfeição. Enfim,

vem à luz a experiência que
se vinha elaborando no laboratório
de algum andar do sonho (o sonho
é uma espécie de edifício?):

o mar nasce de amar, e águas
sem margem usurpam a cidade,
arrastam inocentes. Os amantes
gozam, é justo que seja assim.









Obra de Beatriz Milhazes


PRESTO

Os dias despencam
aos pedaços. Logo será janeiro.

Posso farejar o amarelo das amendoeiras
de então (amarelas como teu cabelo)

e a praia, os bares, a ferrugem, nossas costas
e braços liquefeitos. Tanto faz a solidão,

a companhia: tudo são doenças tropicais,
incuráveis. O verão virá, forasteiro,

no vôo tonto, nupcial dos cupins
em volta das lâmpadas. Janeiro

está próximo, pressinto seu peso, a alegria,
o tremor, a sezão, o óleo,

a girândola veloz dos relógios
a nos golpear no ventre. Girassóis

em bando assestarão suas lâminas
em direção aos táxis

enquanto os rios, erráticos, desaguarão
à porta dos edifícios da Senador Vergueiro.

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