domingo, 31 de outubro de 2010
Antologia da APPB
No dia 10 de outubro de 2010, foi lançada na feira do Livro em Frankfurt, nossa primeira antologia de poesias
Entrevista com o poeta Augusto de Campos
Dedicado ao Galileu, meu filho, que completou um ano
Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta. Foi um dos criadores, junto com Haroldo de Campos e Décio Pignatari, do movimento de poesia concreta brasileira. Traduziu poetas como Cummings, Pound, Maiakóvsky, Mallarmé, Blake, Rimbaud, Valéry, Keats, Hopkins, dentre outros. Traduziu, com Haroldo de Campos, trechos do livro Finnegans Wake, do escritor irlandês James Joyce. Publicou um livro onde reúne ensaios sobre a música erudita contemporânea e lançou o CD Poesia é risco. Os dados acima são apenas um pequeno resumo de uma vida dedicada à poesia, cujo início data do final dos anos 40.
Em todas as atividades que exerce (poesia, tradução e ensaio) Augusto é um exemplo do criador e pensador extremamente apaixonado pelo que faz. Amante da poesia e da música inovadora, não se espanta com a radicalidade dos criadores que ousam experimentar para além do já criado. Ao contrário, comunga em sua poesia e em suas reflexões com esse universo. É ele também alguém que busca a inovação constante.
De Paul Valéry adota a máxima que diz que o trabalho de um escritor deve ser mensurado pelo rigor de suas recusas. Por isso, trabalha pacientemente cada poema e cada tradução; como um joalheiro, busca a perfeição e o brilho que surgem da forma bem acabada. Esse trabalho é notável para aqueles que mergulham nos seus livros. Como uma criança que, descontente com os universos estabelecidos, constrói, desconstrói e reconstrói o mundo a cada nova brincadeira, o poeta Augusto não envelhece nunca: suas invenções estão aí para provar.
Na entrevista que o poeta gentilmente nos concedeu por e-mail, comenta os rumos da nova poesia brasileira, alguns aspectos de antigas polêmicas contra o Concretismo, fala de seu trabalho como tradutor e sobre o seqüestro que a música erudita contemporânea sofre em nossos meios culturais.
1 - Do Concretismo ao Neoconcretismo e ao Poema-Processo a teoria era uma das bases sobre a qual se assentava a poesia que se praticava. O Sr. poderia falar de alguns conceitos que acha importantes para a prática da poesia atualmente? Dentro desta mesma questão, por que os novos poetas não teorizam mais sobre a poesia que fazem?
AUGUSTO DE CAMPOS: Manifestos não são decretos. São projetos. A teoria surge em determinados momentos, como decorrência de um projeto coletivo de grandes transformações. Nasce da prática e vai sendo alterada por ela. Quanto aos conceitos que acho importantes para a poesia, hoje, penso que, entre outros, são relevantes os temas da autonomia da linguagem poética, da liberdade e simultaneamente do rigor de construção poética, da curiosidade formal, da experimentação permanente e da consciência contextual da modernidade e das novas tecnologias, que repotencializaram as propostas das vanguardas do século XX. Mas não é necessário teorizar para fazer poesia. Se os jovens não teorizam é porque não têm o que teorizar. Por outro lado, há uma grande indefinição nesta época de desencantos utópicos, no vácuo do "pós-tudo". Estamos, talvez, numa fase de transição.
2 - O Sr. acredita na possibilidade da criação de uma obra de arte totalmente abstrata, que se constitua como uma linguagem fora da história (esse "pesadelo" joyceano)? A poesia concreta (e a poesia que o Sr. pratica hoje) tentou alcançar, em sua base e em suas buscas, esse abandono à referência histórica?
AUGUSTO DE CAMPOS: Sim, é possível criar uma obra totalmente abstrata. Khrutchônikh, Iliazd e os adeptos do "zaum" (linguagem transmental) da vanguarda russa o fizeram, em maior ou menor grau, com palavras inventadas, assim como Kurt Schwitters, com a sua "ur-sonate" (sonata pré-silábica), ou ainda Gertrude Stein com a linguagem "não-referencial" (empregando palavras comuns dessemantizadas pelo contexto) dos seus "Tender Buttons" (Botões Suaves), De um modo mais geral, a poesia se situa mesmo "fora da história". "É uma viagem ao desconhecido", como escreveu Maiakóvski, poeta mais do que engajado. "O poeta é um fingidor", de Pessoa, poderia ser escrito por qualquer poeta de qualquer tempo ou lugar. Essa é a natureza intrínseca da poesia, que acima de tudo fala do homem e ao homem de todos os tempos e de todas as latitudes. Isso não quer dizer que a poesia não possa abranger a história ou ser referenciada a ela, caso dos CANTOS de Pound, em nossa época. A poesia concreta, embora tendo a autonomia da linguagem poética como um dos seus postulados, e a sua independência do fato histórico como um corolário, não foi infensa aos eventos significativos do seu tempo e do seu país. A produção dos anos 60 é particularmente rica de exemplos de poemas referenciados ao momento histórico.
3 - Segundo Ferreira Gullar, "João Cabral é um poeta que se refugiou na linguagem, mas reinicia a cada momento a tarefa de reaver o mundo perdido; já os concretistas se refugiaram na palavra, mas a tomaram como a 'verdadeira realidade', como fetiche." (In: "Indagações de Hoje". p. 180). O Sr. concorda com essa observação que o Gullar faz do Concretismo?
AUGUSTO DE CAMPOS: É evidente que não concordo. A observação não faz justiça sequer à poesia de João Cabral, que nem se refugiou na linguagem nem perdeu mundo algum, mas simplesmente compreendeu a natureza da linguagem poética e a desvelou em poemas metalinguísticos como "Anti-Ode", a par de enfocar temas sociais, amorosos ou outros em outras obras, sempre com alta densidade vocabular e notável rigor compositivo. Ao contrário de Gullar, ele entendeu perfeitamente os propósitos da poesia concreta, que sempre valorizou, chegando a colocá-la acima até da poesia do Modernismo, em vários depoimentos, de conhecimento público. Ora, qualquer um pode ver que uma das características diferenciais da poesia concreta, relativamente a outros movimentos poéticos de vanguarda, é o fato de ela não renunciar à dimensão semântica. VERBIVOCOVISUAL, ela se afirmou desde o início, com isso significando a ênfase simultânea no verbal, no sonoro e no visual, em pé de igualdade, e não apenas nos dois últimos níveis ou só no primeiro. Não fora assim, como explicar poemas como TERRA, BEBA COCA COLA, SERVIDÃO DE PASSAGEM, ESTELA CUBANA, PORTÕES ABREM, LUXO, os "popcretos", para só citar alguns dos mais ostensivamente referenciais e ideológicos? Mesmo poemas de semântica mais abstrata, como TENSÃO, polarizando som e silêncio, não deixam de configurar arquétipos vivenciais. Outros ainda, de natureza metalinguística, perscrutam a linguagem poética e tratam de expandi-la em novas articulações, até o limite. Mas sempre mantendo o significado. De linhagem poundiana ("precise definition"), a poesia concreta nunca foi "não-referencial". O que propusemos, a par de reivindicar a autonomia da linguagem poética em relação à linguagem contratual, foi uma nova abordagem da poesia, uma sintaxe tempo-espacial, não-discursiva, mais consentânea com os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia do nosso tempo, e uma nova configuração formal, ao mesmo tempo rigorosa e livre, capaz de projetá-la em dimensões interdisciplinares além-verso e além- livro. O que recusamos sempre, como João Cabral, foi a demagogia sentimental e a retórica panfletária em busca de aplauso fácil. Nosso lema foi o maiakovskiano "não há poesia revolucionária sem forma revolucionária." Como eu digo no meu poema NÃO: "humano autêntico sincero mas ainda não é poesia". O resto é ressentimento.
4 - Embora já incorporado aos livros didáticos de literatura brasileira, não existe movimento literário no Brasil que conheça tanta crítica quanto o concretismo. O modernismo de 22, embora atacado no seu surgimento, ao contrário, é agora muito bem aceito (e assimilado) pela cultura brasileira. Que razões o Sr. atribui a essa rejeição e, mesmo, perseguição, ao Concretismo?
AUGUSTO DE CAMPOS: A poesia concreta foi o mais radical dos movimentos poéticos brasileiros, tornou mais difícil escrever poesia, pôs em circulação um repertório sem precedente de linguagens poéticas não visitadas entre nós, traduzidas criativamente do original, da antiga poesia hebraica, chinesa e japonesa às vanguardas - trovadores provençais, Dante e Guido Cavalcanti, poetas "metafísicos" ingleses, Mallarmé, Corbière, Hopkins, Pound, Joyce, Cummings, Gertrude Stein, August Stramm e Kurt Schwitters, Kkliébnikov, Maiakóvski e a nova poética russa, entre outros. Nunca se fez isso antes entre nós. Revimos o percurso literário brasileiro, desmontando preconceitos e promovendo os marginalizados pelas histórias e "formações da literatura" oficiais, como Gregório de Matos, Sousândrade, Qorpo Santo, Kilkerry, Ernani Rosas, Oswald, Luis Aranha, Pagu. E a poesia concreta já está nos livros didáticos, como você mesmo acentua. Quer dizer, até as crianças começam a entender. Ainda há pouco minhas netas, de 9 e 15 anos, vieram me mostrar, em seus livros de estudo, os poemas LUXO e PÓS-TUDO, precisamente os que a crítica universitária sociologóide tentou denegrir há quase 20 anos atrás. Relato isso não pare me vangloriar, mas para pôr em evidência o abismo que separa grande parte da crítica do trabalho criativo. É claro que tudo isso provocou e ainda provoca muita inveja, irritação e medo. A renitente perseguição de alguns poetas sem "fair play", de certa parte da crônica jornalística e dos redutos mais conservadores universitários é lamentável, mas é compreensível e é sinal de vitalidade da poesia concreta. Que continua a provocar e a despertar reações apaixonadas, pró e contra.
5 - O que leva o Sr. a traduzir mais do que a escrever e publicar sua própria poesia?
AUGUSTO DE CAMPOS: O que me interessa acima de tudo não é a "minha" poesia, mas a poesia, "tout court". Gosto do convívio com os outros poetas, os poetas que admiro, e traduzi-los, converter os seus poemas originais, de outros idiomas, em poemas de língua portuguesa, é uma forma de dialogar e aprender, celularmente, com eles. A minha própria poesia passa por um crivo muito severo de auto-crítica e não sinto nem compulsão para criá-la nem pressa em publicá-la. Entre VIVA VAIA (1979) e DESPOESIA (1994) passaram-se 15 anos, e agora mesmo, quando preparo o meu novo livro, vejo que já transcorreram 9 anos. Acho inútil contribuir para inflacionar o mundo dos livros, acreditando com Fernando Pessoa, que "cada homem tem pouquíssimo que exprimir e a soma de toda uma vida de sentimento e pensamento pode, por vezes, inserir-se no total de um poema de oito linhas." Contento-me com a elaboração de alguns poucos poemas por ano. Não forço a barra. Sou muito exigente. E mesmo assim, a minha produção, talvez porque eu tenha atingido idade avançada, já ultrapassa quantitativamente, de muito, a de maravilhosos poetas como Arnaut Daniel, Mallarmé, Rimbaud, Cesário Verde, Sá-Carneiro e tantos outros, mestres e inventores, cujo pequeno acervo de obras poéticas vale mais do que centenas de grossos tomos de poesia.
6 - O Sr. tem um grande apreço pela música erudita contemporânea (da Escola de Viena até compositores recentes como Berio e John Cage, dentre outros). De que forma a frequentação a essa música interfere no seu fazer poético ou na sua reflexão sobre a poesia?
AUGUSTO DE CAMPOS: É evidente que a música, e a música erudita contemporânea em particular, exercem grande influência sobre a minha poesia. POETAMENOS não teria existido, como tal, sem a minha paixão pela música de Webern, para mim o maior compositor de todos os tempos. As aventuras exploratórias dessa produção musical, de grande teor inventivo - marginalizada pelos meios de comunicação - estimulam a minha curiosidade e me instigam às vezes tanto ou mais do que a própria poesia.
7- Existe hoje nas salas de concerto brasileiras o que se poderia chamar de sequestro da música erudita do século XX. Não existe um projeto de tornar pública (ou visível) essa música. Continuamos anos a fio ouvindo o mesmo repertório musical. Por que o Sr. acha que essa música ainda não é executada sistematicamente como, por exemplo, o repertório dos séculos XVIII e XIX?
AUGUSTO DE CAMPOS: A culpa é em grande parte dos meios de comunicação, que não cumprem, como seria desejável, o seu papel de mediação e de informação. Dão um destaque desproporcional à moda ou a música popular de consumo, mas não noticiam e não apresentam com destaque e com glamour as propostas da música do nosso tempo. Também os patrocínios culturais continuam a privilegiar a música de consumo, justamente a que não necessita de apoio financeiro para sobreviver. Dessensibiliza-se e desestimula-se a curiosidade do ouvinte. Acuados diante do distanciamento do público, produtores culturais, orquestras, maestros e concertistas se apavoram e atuam com uma timidez excessiva, autolimitando-se ao repertório mais surrado dos séculos XVIII e XIX, na expectativa de satisfazerem a platéia fugidia e os financiadores gananciosos. Uma triste história de desinformação e acovardamento, que colocou lamentavelmente entre parênteses e entre paredes a música contemporânea - afinal, a do nosso tempo - assim como a de outros tempos, como a grande música de Machaut, dos polifonistas da Renascença ou dos madrigalistas dos séculos XVI e XVII.
8 - Antes da tradução de trechos de Finnegans Wake feita pelo Sr. e por Haroldo de Campos não havia outra versão desta obra de Joyce. O que o Sr. está achando da nova tradução que está sendo por feita por Donaldo Schüler? Qual a importância do aparecimento desta tradução para as letras brasileiras?
AUGUSTO DE CAMPOS: Acho louvável e meritório o empreendimento de Donaldo Schüler. Certamente há de contribuir muito para o entendimento e a divulgação da obra de Joyce entre nós. Trata-se, porém, a meu ver, de uma tradução extensiva, menos exigente ou mais informal do ponto de vista estético, um projeto diferente do nosso, que é mais seletivo -tradução intensiva, onde alguns dos fragmentos mais belos do FINNEGANS WAKE são burilados microesteticamente em termos de ritmo, achados verbais e equilíbrio sonoro, de modo a produzir equivalentes criativos da linguagem joyceana em língua portuguesa, com máximo grau de poeticidade.
9 - A publicação de poesia no Brasil parece ter aumentado e uma nova geração de poetas tem surgido. O sr. acompanha essa produção? Percebe alguma característica marcante nesses poetas?
AUGUSTO DE CAMPOS: Sempre foi grande a publicação de poesia entre nós, ainda que em pequenas tiragens e por pequenas editoras, muitas vezes financiada pelos próprios poetas. Não tenho como acompanhar em detalhe toda essa produção. Mas, no meio de muitas tentativas menos felizes, surge sempre alguma coisa interessante. Deixando de lado, por desprezíveis, alguns xiítas do verso, que querem voltar a poéticas conservadoras, prémodernistas, com pés quebrados e insultos dobrados, o que vejo é uma produção majoritária, mais conformista ou conformada, que tenta encontrar uma pós-voz sob os parâmetros da dicção drummond-cabralina, e uma corrente minoritária, mais experimentalista, que vai dos poetas pós-concretos, de linha verbal, "logopaicos" - como diria Pound -, aos poucos, "melo" e "fanopaicos", que começam a desbravar a terra semi-incógnita da linguagem digital. Tenho naturalmente simpatia especial pelos mais inquietos, aqueles que experimentam novos caminhos, dando continuidade à "revolução permanante" das vanguardas, os que se aventuram por criações interdisciplinares e os que tentam responder, no livro ou fora dele, à provocação das novas tecnologias. Mas longe de mim querer ditar normas. Que cada um faça a sua mágica. Com os meus melhores votos.
Um poema de Augusto de Campos:
Pós-tudo (1984)
Para ir além:
www.uol.com.br/augustodecampos
Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta. Foi um dos criadores, junto com Haroldo de Campos e Décio Pignatari, do movimento de poesia concreta brasileira. Traduziu poetas como Cummings, Pound, Maiakóvsky, Mallarmé, Blake, Rimbaud, Valéry, Keats, Hopkins, dentre outros. Traduziu, com Haroldo de Campos, trechos do livro Finnegans Wake, do escritor irlandês James Joyce. Publicou um livro onde reúne ensaios sobre a música erudita contemporânea e lançou o CD Poesia é risco. Os dados acima são apenas um pequeno resumo de uma vida dedicada à poesia, cujo início data do final dos anos 40.
Em todas as atividades que exerce (poesia, tradução e ensaio) Augusto é um exemplo do criador e pensador extremamente apaixonado pelo que faz. Amante da poesia e da música inovadora, não se espanta com a radicalidade dos criadores que ousam experimentar para além do já criado. Ao contrário, comunga em sua poesia e em suas reflexões com esse universo. É ele também alguém que busca a inovação constante.
De Paul Valéry adota a máxima que diz que o trabalho de um escritor deve ser mensurado pelo rigor de suas recusas. Por isso, trabalha pacientemente cada poema e cada tradução; como um joalheiro, busca a perfeição e o brilho que surgem da forma bem acabada. Esse trabalho é notável para aqueles que mergulham nos seus livros. Como uma criança que, descontente com os universos estabelecidos, constrói, desconstrói e reconstrói o mundo a cada nova brincadeira, o poeta Augusto não envelhece nunca: suas invenções estão aí para provar.
Na entrevista que o poeta gentilmente nos concedeu por e-mail, comenta os rumos da nova poesia brasileira, alguns aspectos de antigas polêmicas contra o Concretismo, fala de seu trabalho como tradutor e sobre o seqüestro que a música erudita contemporânea sofre em nossos meios culturais.
1 - Do Concretismo ao Neoconcretismo e ao Poema-Processo a teoria era uma das bases sobre a qual se assentava a poesia que se praticava. O Sr. poderia falar de alguns conceitos que acha importantes para a prática da poesia atualmente? Dentro desta mesma questão, por que os novos poetas não teorizam mais sobre a poesia que fazem?
AUGUSTO DE CAMPOS: Manifestos não são decretos. São projetos. A teoria surge em determinados momentos, como decorrência de um projeto coletivo de grandes transformações. Nasce da prática e vai sendo alterada por ela. Quanto aos conceitos que acho importantes para a poesia, hoje, penso que, entre outros, são relevantes os temas da autonomia da linguagem poética, da liberdade e simultaneamente do rigor de construção poética, da curiosidade formal, da experimentação permanente e da consciência contextual da modernidade e das novas tecnologias, que repotencializaram as propostas das vanguardas do século XX. Mas não é necessário teorizar para fazer poesia. Se os jovens não teorizam é porque não têm o que teorizar. Por outro lado, há uma grande indefinição nesta época de desencantos utópicos, no vácuo do "pós-tudo". Estamos, talvez, numa fase de transição.
2 - O Sr. acredita na possibilidade da criação de uma obra de arte totalmente abstrata, que se constitua como uma linguagem fora da história (esse "pesadelo" joyceano)? A poesia concreta (e a poesia que o Sr. pratica hoje) tentou alcançar, em sua base e em suas buscas, esse abandono à referência histórica?
AUGUSTO DE CAMPOS: Sim, é possível criar uma obra totalmente abstrata. Khrutchônikh, Iliazd e os adeptos do "zaum" (linguagem transmental) da vanguarda russa o fizeram, em maior ou menor grau, com palavras inventadas, assim como Kurt Schwitters, com a sua "ur-sonate" (sonata pré-silábica), ou ainda Gertrude Stein com a linguagem "não-referencial" (empregando palavras comuns dessemantizadas pelo contexto) dos seus "Tender Buttons" (Botões Suaves), De um modo mais geral, a poesia se situa mesmo "fora da história". "É uma viagem ao desconhecido", como escreveu Maiakóvski, poeta mais do que engajado. "O poeta é um fingidor", de Pessoa, poderia ser escrito por qualquer poeta de qualquer tempo ou lugar. Essa é a natureza intrínseca da poesia, que acima de tudo fala do homem e ao homem de todos os tempos e de todas as latitudes. Isso não quer dizer que a poesia não possa abranger a história ou ser referenciada a ela, caso dos CANTOS de Pound, em nossa época. A poesia concreta, embora tendo a autonomia da linguagem poética como um dos seus postulados, e a sua independência do fato histórico como um corolário, não foi infensa aos eventos significativos do seu tempo e do seu país. A produção dos anos 60 é particularmente rica de exemplos de poemas referenciados ao momento histórico.
3 - Segundo Ferreira Gullar, "João Cabral é um poeta que se refugiou na linguagem, mas reinicia a cada momento a tarefa de reaver o mundo perdido; já os concretistas se refugiaram na palavra, mas a tomaram como a 'verdadeira realidade', como fetiche." (In: "Indagações de Hoje". p. 180). O Sr. concorda com essa observação que o Gullar faz do Concretismo?
AUGUSTO DE CAMPOS: É evidente que não concordo. A observação não faz justiça sequer à poesia de João Cabral, que nem se refugiou na linguagem nem perdeu mundo algum, mas simplesmente compreendeu a natureza da linguagem poética e a desvelou em poemas metalinguísticos como "Anti-Ode", a par de enfocar temas sociais, amorosos ou outros em outras obras, sempre com alta densidade vocabular e notável rigor compositivo. Ao contrário de Gullar, ele entendeu perfeitamente os propósitos da poesia concreta, que sempre valorizou, chegando a colocá-la acima até da poesia do Modernismo, em vários depoimentos, de conhecimento público. Ora, qualquer um pode ver que uma das características diferenciais da poesia concreta, relativamente a outros movimentos poéticos de vanguarda, é o fato de ela não renunciar à dimensão semântica. VERBIVOCOVISUAL, ela se afirmou desde o início, com isso significando a ênfase simultânea no verbal, no sonoro e no visual, em pé de igualdade, e não apenas nos dois últimos níveis ou só no primeiro. Não fora assim, como explicar poemas como TERRA, BEBA COCA COLA, SERVIDÃO DE PASSAGEM, ESTELA CUBANA, PORTÕES ABREM, LUXO, os "popcretos", para só citar alguns dos mais ostensivamente referenciais e ideológicos? Mesmo poemas de semântica mais abstrata, como TENSÃO, polarizando som e silêncio, não deixam de configurar arquétipos vivenciais. Outros ainda, de natureza metalinguística, perscrutam a linguagem poética e tratam de expandi-la em novas articulações, até o limite. Mas sempre mantendo o significado. De linhagem poundiana ("precise definition"), a poesia concreta nunca foi "não-referencial". O que propusemos, a par de reivindicar a autonomia da linguagem poética em relação à linguagem contratual, foi uma nova abordagem da poesia, uma sintaxe tempo-espacial, não-discursiva, mais consentânea com os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia do nosso tempo, e uma nova configuração formal, ao mesmo tempo rigorosa e livre, capaz de projetá-la em dimensões interdisciplinares além-verso e além- livro. O que recusamos sempre, como João Cabral, foi a demagogia sentimental e a retórica panfletária em busca de aplauso fácil. Nosso lema foi o maiakovskiano "não há poesia revolucionária sem forma revolucionária." Como eu digo no meu poema NÃO: "humano autêntico sincero mas ainda não é poesia". O resto é ressentimento.
4 - Embora já incorporado aos livros didáticos de literatura brasileira, não existe movimento literário no Brasil que conheça tanta crítica quanto o concretismo. O modernismo de 22, embora atacado no seu surgimento, ao contrário, é agora muito bem aceito (e assimilado) pela cultura brasileira. Que razões o Sr. atribui a essa rejeição e, mesmo, perseguição, ao Concretismo?
AUGUSTO DE CAMPOS: A poesia concreta foi o mais radical dos movimentos poéticos brasileiros, tornou mais difícil escrever poesia, pôs em circulação um repertório sem precedente de linguagens poéticas não visitadas entre nós, traduzidas criativamente do original, da antiga poesia hebraica, chinesa e japonesa às vanguardas - trovadores provençais, Dante e Guido Cavalcanti, poetas "metafísicos" ingleses, Mallarmé, Corbière, Hopkins, Pound, Joyce, Cummings, Gertrude Stein, August Stramm e Kurt Schwitters, Kkliébnikov, Maiakóvski e a nova poética russa, entre outros. Nunca se fez isso antes entre nós. Revimos o percurso literário brasileiro, desmontando preconceitos e promovendo os marginalizados pelas histórias e "formações da literatura" oficiais, como Gregório de Matos, Sousândrade, Qorpo Santo, Kilkerry, Ernani Rosas, Oswald, Luis Aranha, Pagu. E a poesia concreta já está nos livros didáticos, como você mesmo acentua. Quer dizer, até as crianças começam a entender. Ainda há pouco minhas netas, de 9 e 15 anos, vieram me mostrar, em seus livros de estudo, os poemas LUXO e PÓS-TUDO, precisamente os que a crítica universitária sociologóide tentou denegrir há quase 20 anos atrás. Relato isso não pare me vangloriar, mas para pôr em evidência o abismo que separa grande parte da crítica do trabalho criativo. É claro que tudo isso provocou e ainda provoca muita inveja, irritação e medo. A renitente perseguição de alguns poetas sem "fair play", de certa parte da crônica jornalística e dos redutos mais conservadores universitários é lamentável, mas é compreensível e é sinal de vitalidade da poesia concreta. Que continua a provocar e a despertar reações apaixonadas, pró e contra.
5 - O que leva o Sr. a traduzir mais do que a escrever e publicar sua própria poesia?
AUGUSTO DE CAMPOS: O que me interessa acima de tudo não é a "minha" poesia, mas a poesia, "tout court". Gosto do convívio com os outros poetas, os poetas que admiro, e traduzi-los, converter os seus poemas originais, de outros idiomas, em poemas de língua portuguesa, é uma forma de dialogar e aprender, celularmente, com eles. A minha própria poesia passa por um crivo muito severo de auto-crítica e não sinto nem compulsão para criá-la nem pressa em publicá-la. Entre VIVA VAIA (1979) e DESPOESIA (1994) passaram-se 15 anos, e agora mesmo, quando preparo o meu novo livro, vejo que já transcorreram 9 anos. Acho inútil contribuir para inflacionar o mundo dos livros, acreditando com Fernando Pessoa, que "cada homem tem pouquíssimo que exprimir e a soma de toda uma vida de sentimento e pensamento pode, por vezes, inserir-se no total de um poema de oito linhas." Contento-me com a elaboração de alguns poucos poemas por ano. Não forço a barra. Sou muito exigente. E mesmo assim, a minha produção, talvez porque eu tenha atingido idade avançada, já ultrapassa quantitativamente, de muito, a de maravilhosos poetas como Arnaut Daniel, Mallarmé, Rimbaud, Cesário Verde, Sá-Carneiro e tantos outros, mestres e inventores, cujo pequeno acervo de obras poéticas vale mais do que centenas de grossos tomos de poesia.
6 - O Sr. tem um grande apreço pela música erudita contemporânea (da Escola de Viena até compositores recentes como Berio e John Cage, dentre outros). De que forma a frequentação a essa música interfere no seu fazer poético ou na sua reflexão sobre a poesia?
AUGUSTO DE CAMPOS: É evidente que a música, e a música erudita contemporânea em particular, exercem grande influência sobre a minha poesia. POETAMENOS não teria existido, como tal, sem a minha paixão pela música de Webern, para mim o maior compositor de todos os tempos. As aventuras exploratórias dessa produção musical, de grande teor inventivo - marginalizada pelos meios de comunicação - estimulam a minha curiosidade e me instigam às vezes tanto ou mais do que a própria poesia.
7- Existe hoje nas salas de concerto brasileiras o que se poderia chamar de sequestro da música erudita do século XX. Não existe um projeto de tornar pública (ou visível) essa música. Continuamos anos a fio ouvindo o mesmo repertório musical. Por que o Sr. acha que essa música ainda não é executada sistematicamente como, por exemplo, o repertório dos séculos XVIII e XIX?
AUGUSTO DE CAMPOS: A culpa é em grande parte dos meios de comunicação, que não cumprem, como seria desejável, o seu papel de mediação e de informação. Dão um destaque desproporcional à moda ou a música popular de consumo, mas não noticiam e não apresentam com destaque e com glamour as propostas da música do nosso tempo. Também os patrocínios culturais continuam a privilegiar a música de consumo, justamente a que não necessita de apoio financeiro para sobreviver. Dessensibiliza-se e desestimula-se a curiosidade do ouvinte. Acuados diante do distanciamento do público, produtores culturais, orquestras, maestros e concertistas se apavoram e atuam com uma timidez excessiva, autolimitando-se ao repertório mais surrado dos séculos XVIII e XIX, na expectativa de satisfazerem a platéia fugidia e os financiadores gananciosos. Uma triste história de desinformação e acovardamento, que colocou lamentavelmente entre parênteses e entre paredes a música contemporânea - afinal, a do nosso tempo - assim como a de outros tempos, como a grande música de Machaut, dos polifonistas da Renascença ou dos madrigalistas dos séculos XVI e XVII.
8 - Antes da tradução de trechos de Finnegans Wake feita pelo Sr. e por Haroldo de Campos não havia outra versão desta obra de Joyce. O que o Sr. está achando da nova tradução que está sendo por feita por Donaldo Schüler? Qual a importância do aparecimento desta tradução para as letras brasileiras?
AUGUSTO DE CAMPOS: Acho louvável e meritório o empreendimento de Donaldo Schüler. Certamente há de contribuir muito para o entendimento e a divulgação da obra de Joyce entre nós. Trata-se, porém, a meu ver, de uma tradução extensiva, menos exigente ou mais informal do ponto de vista estético, um projeto diferente do nosso, que é mais seletivo -tradução intensiva, onde alguns dos fragmentos mais belos do FINNEGANS WAKE são burilados microesteticamente em termos de ritmo, achados verbais e equilíbrio sonoro, de modo a produzir equivalentes criativos da linguagem joyceana em língua portuguesa, com máximo grau de poeticidade.
9 - A publicação de poesia no Brasil parece ter aumentado e uma nova geração de poetas tem surgido. O sr. acompanha essa produção? Percebe alguma característica marcante nesses poetas?
AUGUSTO DE CAMPOS: Sempre foi grande a publicação de poesia entre nós, ainda que em pequenas tiragens e por pequenas editoras, muitas vezes financiada pelos próprios poetas. Não tenho como acompanhar em detalhe toda essa produção. Mas, no meio de muitas tentativas menos felizes, surge sempre alguma coisa interessante. Deixando de lado, por desprezíveis, alguns xiítas do verso, que querem voltar a poéticas conservadoras, prémodernistas, com pés quebrados e insultos dobrados, o que vejo é uma produção majoritária, mais conformista ou conformada, que tenta encontrar uma pós-voz sob os parâmetros da dicção drummond-cabralina, e uma corrente minoritária, mais experimentalista, que vai dos poetas pós-concretos, de linha verbal, "logopaicos" - como diria Pound -, aos poucos, "melo" e "fanopaicos", que começam a desbravar a terra semi-incógnita da linguagem digital. Tenho naturalmente simpatia especial pelos mais inquietos, aqueles que experimentam novos caminhos, dando continuidade à "revolução permanante" das vanguardas, os que se aventuram por criações interdisciplinares e os que tentam responder, no livro ou fora dele, à provocação das novas tecnologias. Mas longe de mim querer ditar normas. Que cada um faça a sua mágica. Com os meus melhores votos.
Um poema de Augusto de Campos:
Pós-tudo (1984)
Para ir além:
www.uol.com.br/augustodecampos
Entrevista com Leila Miccolis
O Espaço Ecos entrevista a poeta, escritora de cinema, teatro e TV Leila Miccolis
Entrevista gentilmente concedida à Vânia Moreira Diniz
Entrevista gentilmente concedida à Vânia Moreira Diniz
1 - Leila, o seu poder criativo é imenso, desde quando descobriu esse dom?
R - Vânia querida, deixa eu dizer primeiro que não considero a criatividade um dom privilegiado; acho que o criativo existe em todos; desenvolvê-lo nada mais é do que um processo cultural, que necessita treino, motivações e exercício diário; minha mãe, como diretora de escola primária, sabia disso. Era uma mulher extraordinariamente comum: maravilhosamente sábia. Então, desde muito pequena, fui tida como garota prodígio, mas, na verdade, devo a “Dona Corália Miccolis” a lição de que todos somos iguais em termos de inteligência, embora poucos tenham condições favoráveis para expandi-la, como se deu no meu caso. Minha mãe incentivou-me muito: lia muitas histórias para mim, contava muitos casos, inclusive da família (que, por parte dela, era Barata Ribeiro), e enquanto ouvia, meu imaginário viajava. Aos três anos de idade fiz minha primeira quadrinha para o meu gato, o Marquês de Baratol Rabudo, e, com a mesma idade, espantei certa vez o ônibus lotado em que viajávamos, ao apontar uma árvore, dizendo, encantada: — mamãe, veja que árvore “fondosa”... O r não saiu, mas a principal noção, que ultrapassava a gramática, o literário e entrava pela seara da antropologia e da ecologia, a principal noção, repito, já estava semeada e começava a brotar...
2 - Conseguiria abandonar essa força de criar e viver uma vida diferente, longe de tudo que já fez até hoje?
R - Acho que a esta altura da vida, o que eu tinha que abandonar, já abandonei, que era a advocacia. Agora quero mais é aprofundar-me na área que escolhi – por isso estou fazendo mestrado em Ciência da Literatura – Teoria Literária – na UFRJ (creio que minhas aulas online de roteiro de poesia e de novela de televisão ganharão mais em densidade e método). No caso de alguma grande adversidade, se eu tivesse de largar tudo, provavelmente o faria, porque não tenho tendências a ser mártir; no entanto, com toda certeza, me sentiria bastante incompleta e insatisfeita.
3 - Como encaminhou seus passos para a literatura e chegou ao teatro, cinema, rádio, televisão?
R - Quando deixei de exercer a advocacia para escrever tempo integral percebi que não poderia viver de literatura apenas fazendo poesia, em meu país; precisei então enveredar por outras áreas. Eu já ganhara muitos concursos literários, mas eles só me valiam como bagagem cultural, ou como currículo dentro de áreas restritas e tradicionais. Resolvi então, em paralelo, me iniciar em outras modalidades, e a minha primeira tentativa neste sentido foi escrever para revistas de histórias em quadrinhos – um grande aprendizado, que me ajudou bastante, inclusive a entender que muitos caminhos aparentemente dissociados da literatura, não o são, na prática (o pós-modernismo nos deu a capacidade de costurar, por hipertextos, fragmentos e idéias à primeira vista totalmente desconectados...). Quando Henrique Martins, na época (1983) diretor de núcleo do “Caso Verdade” da Globo, me perguntou como eu tinha escrito um primeiro roteiro para TV como aquele (que acabou inclusive sendo comprado), eu respondi, meio confusa: “não sei exatamente a resposta, mas se você quer saber o que faço na vida hoje, eu lido com história em quadrinhos”. E ele concluiu: — “Então é isso. Está explicado”.
R - Quando deixei de exercer a advocacia para escrever tempo integral percebi que não poderia viver de literatura apenas fazendo poesia, em meu país; precisei então enveredar por outras áreas. Eu já ganhara muitos concursos literários, mas eles só me valiam como bagagem cultural, ou como currículo dentro de áreas restritas e tradicionais. Resolvi então, em paralelo, me iniciar em outras modalidades, e a minha primeira tentativa neste sentido foi escrever para revistas de histórias em quadrinhos – um grande aprendizado, que me ajudou bastante, inclusive a entender que muitos caminhos aparentemente dissociados da literatura, não o são, na prática (o pós-modernismo nos deu a capacidade de costurar, por hipertextos, fragmentos e idéias à primeira vista totalmente desconectados...). Quando Henrique Martins, na época (1983) diretor de núcleo do “Caso Verdade” da Globo, me perguntou como eu tinha escrito um primeiro roteiro para TV como aquele (que acabou inclusive sendo comprado), eu respondi, meio confusa: “não sei exatamente a resposta, mas se você quer saber o que faço na vida hoje, eu lido com história em quadrinhos”. E ele concluiu: — “Então é isso. Está explicado”.
4 - Quais foram os autores que começaram a influência na sua literatura?
R - Fazendo minhas as palavras do poeta Lêdo Ivo, “não tive influências, mas convivências”... (risos). Comigo, sempre funcionou o seguinte sistema: ler muito e esquecer tudo o que li, na hora de escrever. Lógico que, latente, ficou muito das leituras, que é a terra fértil, viva, mãe de toda colheita; mas o alimento que me nutriu foi reciclado, ou melhor, digerido e metabolizado de forma exclusiva, pessoal. Sou autodidata até pelo meu temperamento irreverente e questionador, incapaz de se sujeitar, cômoda e acomodadamente, a obedecer padrões autoritários que levam a cânones estilísticos consagrados. Gosto de ousar, de experimentar, mexo em um texto meu à exaustão, até ele ficar do jeito que eu quero; e desmonto-o todo, se, tempos depois, ele me parecer deslocado. Há poemas meus de três a cinco versos (em poesia sou bem minimalista), que ficaram anos sendo refeitos. Por outro lado, sendo meu trabalho cultural do tipo aglutinador, passo a maior parte do tempo lendo muito textos inéditos, ainda pouco ou nada compromissados com “padrões de qualidade” preestabelecidos, o que me possibilita perceber o quanto a linguagem, mais visivelmente a poética, pode senão romper pelo menos denunciar a relação de poder do discurso, desarticulando-o, nem que seja pela ambigüidade e pelo efeito conotativo das suas imagens. É principalmente esta literatura – sempre emergente, em qualquer época em que ela surge – que me mostra o quanto a literatura é vital para sacudir construtivamente o mundo, a fim de fazer com que ele melhore, ao debater seus limites, limitações, jargões, preceitos e preconceitos. Tenho muito carinho pelos poetas ainda anônimos – uma plêiade de estrelas de imensa grandeza –, e admiro muitos deles, mais às vezes até do que alguns nomes que a crítica aplaude e a intelectualidade reverencia.
5 - Seu acervo literário é constituído de versáteis e brilhantes obras. Acha que o reconhecimento público tem compensado a dificuldade financeira que todo escritor possui na hora de publicar suas obras?
R - Embora sem público um escritor não se realize, não escrevo com o fim primordial de ser reconhecida. Se dependesse disso, teria desistido no começo de carreira, porque o que mais ouvi foi desestímulo, do tipo: “uma mulher não escreve poesia nestes moldes”, como se a poesia (ou as mulheres) tivesse fôrmas... Se minha obra é vasta, se escrevo tanto, não é propriamente por mérito, mas porque não sei ser feliz sem este exercício diário, fascinante, em que se mergulha no corpo do mundo e na alma do outro; não quero dizer com isso, no entanto, que o público não seja importante, de modo algum; sentir a receptividade do que se escreve é imprescindível como termômetro e critério de avaliação dentro das leis do mercado, às quais toda obra de arte está de certa forma veiculada. O que quero dizer, porém, é que, mesmo que ninguém gostasse ou lesse o que escrevo, eu simplesmente continuaria escrevendo.
6 - Você que publica tantos autores, tem convicção que a internet facilitou o escritor brasileiro que apenas começa ou que não teve oportunidade?
R - Sem dúvida facilitou. A Internet é uma grande e bela vitrine, que põe em evidência o que está acontecendo neste momento na Turquia, no México, em Londres ou no Japão. Esta simultaneidade, esta possibilidade de comparação de culturas, me delicia; entre eu e a rede foi paixão à primeira vista, ou melhor, ao primeiro clique. Sou muito mais lida agora, pelo mundo afora, do que antes, já que, em geral, o livro no Brasil tem tiragens muito limitadas. No entanto, principalmente para quem se inicia no ciberespaço, essas oportunidades são mal aproveitadas, porque o artista, infelizmente, já introjetou o slogan reducionista e boicotador de que “escritor só sabe escrever”. Como em nossa terra não temos agentes literários para os autores ainda não reconhecidos pela mídia, o autor iniciante acaba trilhando a falsa lógica de que, aparecendo em milhares de sites, vai ser lido milhares de vezes. No entanto, porque a Literatura não é uma ciência exata, como a matemática, esta estratégia aparentemente perfeita produz efeitos justamente contrários, ou seja, o autor apaga-se em meio a tantos que pensam e agem igualmente como ele. Às vezes, com um agravante: como, em geral, escolhe dez a quinze poemas para serem seus carros-chefes, seus cartões de visita, os mesmos textos aparecem em todas as milhares de páginas; por melhor que seja o poeta, a mensagem sub-reptícia depois de lermos o mesmo poema dez vezes é de que o autor tem pouca imaginação ou, na melhor das hipóteses, de que ele possui uma produção numericamente pobre ou bissexta. Na era tecnológica, o escritor que quer usar a máquina e a tecnologia em benefício próprio, não pode “apenas saber escrever”; para ser o agente de si mesmo, precisa ser competente também nesta área, inteirar-se de algumas estratégias de marketing adequadas ao processo de autogerenciamento, e ter coragem para escolher a que melhor se adapte à sua obra, à sua imagem, e/ou ao seu temperamento. E entender um pouco, também de html... Só assim ele pode aparecer em meio à multidão, sobressaindo-se pelo que escreve.
7 - Blocos é um potencial, mas sei que dedica a ele a sua vida, como tudo começou ?
R - Começou com a editora (em 91), algum tempo depois foi também jornal e revista impressos, mas, depois que entrou na net, virou meu “xodó”, porque pela web posso expandir o trabalho coletivo que já faço há tantos anos, e também mostrar um painel bem mais amplo das tendências contemporâneas. Blocos Online <http://www.blocosonline.com.br> tem cerca de 18 mil páginas, mais de 7.000 autores participantes (em poesia, desde poetas épicos e sonetistas até representantes da transvanguarda brasileira), e a regularidade da visitas mensais de mais de 60 países. Simultaneamente à divulgação de autores inéditos, ou semi-inéditos, nosso Conselho Administrador constitui-se de nomes de intelectuais reconhecidos internacionalmente, inclusive de Arnaldo Niskier, atual Secretário de Cultura do Estado. É muito gratificante chegarmos onde estamos, não pela importância ou pelo “status”, mas por estarmos efetivamente contribuindo para um mundo melhor, através não só da palavra, mas também da poiesis – da ação da poesia.
8 - E a editora como funciona dentro de blocos.?
R - A editora é uma ramificação da minha atividade de escritora, e, portanto de leitora; mas não a tenho como minha ocupação principal. Urhacy Faustino e eu temos plena consciência de sermos escritores em primeiro lugar, em primeiro plano, acima de tudo, sempre. Talvez por isso tenhamos uma editora tão sui generis, e tão pouco comercial, pelo menos até agora.
R - A editora é uma ramificação da minha atividade de escritora, e, portanto de leitora; mas não a tenho como minha ocupação principal. Urhacy Faustino e eu temos plena consciência de sermos escritores em primeiro lugar, em primeiro plano, acima de tudo, sempre. Talvez por isso tenhamos uma editora tão sui generis, e tão pouco comercial, pelo menos até agora.
9 - Tem valido a pena os momentos de desgaste, cansaço e as dificuldades que enfrenta para que esse sonho se concretize todos os dias?
R - Há horas em que acho o desgaste maior do que o prazer, e aí questiono muito o modo pelo qual estou me conduzindo ou conduzindo meus ideais; mas, volto a dizer: mesmo que eu chegasse à conclusão de que não adiantaria continuar, creio que não pararia, porque escrever para mim é visceral; deixar de banhar-me nesta fonte, seria como que arrancar a minha alegria de viver. Por isso, nas horas de maior desânimo, conjugo dois poetas de dois tempos bem diferentes: Gonçalves Dias e Gonzaga Jr. (Gonzaguinha): “Viver é luta renhida/ viver é lutar” (...) “E sem o seu trabalho/ um homem não tem honra/ e sem a sua honra/ se morre/ se mata/ Não dá pra ser feliz...”. Costumo reagir rápido: enxugo as lágrimas, escolho novas táticas, e continuo a guerrear.
10 - Gostaria muito que explicasse o que são os celulivros? É um projeto maravilhoso que já se transformou em realidade mas poderia falar exatamente sobre eles?
R - Celulivros são livros divulgados através da telefonia celular. É mais uma porta que se abre para a poesia. A iniciativa e o projeto são do Luiz Mendonça e a realização da Mendonça e Müller Consultoria. O funcionamento é simples: o assinante que contrata este serviço escolhe um poeta e, pelo prazo de um mês ou de 45 dias, dependendo do plano que mais lhe convir, ele recebe diariamente um poema daquele autor. É um esquema muito interessante: barato para quem o assina (R$ 17 e 22,00, podendo interromper a qualquer momento), e bem diferente para quem o recebe – desde que goste de poesia, não há como não amar. Também alcança o pessoal mais jovem, que usa o celular para games e um mundo de atividades interativas. Ou seja: é uma lembrança que agrada a todas as idades. O envio é feito através de uma mensagem de texto, pequena, um “torpedo”... só que poético.
R - Celulivros são livros divulgados através da telefonia celular. É mais uma porta que se abre para a poesia. A iniciativa e o projeto são do Luiz Mendonça e a realização da Mendonça e Müller Consultoria. O funcionamento é simples: o assinante que contrata este serviço escolhe um poeta e, pelo prazo de um mês ou de 45 dias, dependendo do plano que mais lhe convir, ele recebe diariamente um poema daquele autor. É um esquema muito interessante: barato para quem o assina (R$ 17 e 22,00, podendo interromper a qualquer momento), e bem diferente para quem o recebe – desde que goste de poesia, não há como não amar. Também alcança o pessoal mais jovem, que usa o celular para games e um mundo de atividades interativas. Ou seja: é uma lembrança que agrada a todas as idades. O envio é feito através de uma mensagem de texto, pequena, um “torpedo”... só que poético.
11 - Como poderia ser divulgado para que um mundo maior e seus próprios leitores tomassem conhecimento e pudessem adquiri-lo?
R - Através do site do Celuler: <http://www.celuler.com..br>. Lá estão o formulário, o nome dos autores, e, inclusive, uma “degustação”, ou seja, uma provinha com seis poemas de cada um deles, inclusive meus.
12 - Acha que os celulivros podem substituir de alguma maneira a edição de um livro?
R - Não, acho que nada “ameaça” o livro, nem compete com ele, porque são mídias diferentes e formas diversas de se entrar em contato com o texto. A intenção é ampliar, divulgar, conquistar mais público até para os livros, em vez de reduzir a leitura. Estou feliz neste fim de ano por participar de um projeto que LIGA mais a poesia ao cotidiano das pessoas.
R - Não, acho que nada “ameaça” o livro, nem compete com ele, porque são mídias diferentes e formas diversas de se entrar em contato com o texto. A intenção é ampliar, divulgar, conquistar mais público até para os livros, em vez de reduzir a leitura. Estou feliz neste fim de ano por participar de um projeto que LIGA mais a poesia ao cotidiano das pessoas.
Vânia - Leila querida, obrigada por sua entrevista, parabéns pelo fascinante trabalho que faz proporcionando a realização de tantos sonhos.
Leila Miccolis - Eu quem agradece, Vânia, por tudo o que você tem realizado em prol da cultura brasileira.
Entrevista com Fábio Campos e Remi Bastos
Os poetas santanenses Fábio Campos e Remi Bastos |
Escritora e pesquisadora Maria do Socorro Ricardo entrevista Fábio Campos e Remi Bastos |
publicado em 01/03/2010 |
Nesta entrevista, publicada entre outras, na página História do Sertão por Santana do Ipanema, dois poetas e duas gerações: Fábio Campos e Remi Bastos. Dois cronistas de cujas liras Santana do Ipanema é o palco e inspiração. Fábio Campos, nesta genealogia do sagrado, descreve o período natalino, de cujas memórias judaico-cristãs compõe este poema sacro. Aqui, reproduzidos alguns de seus versos (publicados na íntegra no portal maltanet). As experiências católicas do poeta construíram um poema cheio de imagens, de lugares, de personagens, de religiosidade, de religião, de religação entre terral e celestial. (...) O anjo outra vez socorre Aparece de verdade Alertando vai José Desce para a Galiléia Atravesse toda a Judéia Se instale em Nazaré Num estábulo Deus nascia Num leito forrado em flores Tendo como companhia Os Reis Magos e os pastores. (...) Do poeta Fábio Campos. Outro poeta que canta e encanta Santana do Ipanema há meio século é Remi Bastos que, por e-mail, concedeu-me esta entrevista. Começou lembrando-se da Avenida Nossa Senhora de Fátima, do Tênis Clube, de Dona Lu, Dona Estellita, Maria Júlia e de seu grande amigo Newton. O tempo do poeta Remi Bastos é um tempo de esperanças e de sentimentos, o tempo deste Engenheiro Agrônomo residente na capital sergipana é o tempo da geografia do rio Ipanema de outrora e da vegetação sertaneja. (1) Quando você escreveu o primeiro texto e disse a si mesmo: “Esse merece ser publicado”? (Remi Bastos) – Minha amiga Maria do Socorro Ricardo, geralmente, tudo o que escrevo tem que passar pelo crivo de meus sentimentos. Se aquele momento não se converter em lágrimas não me dou por satisfeito. Refaço o que for possível até poder sentir que aquilo que acabei de criar está no ponto de ser publicado. 2. Há um livro que não poderá deixar de ser lido nunca, qual e por quê? RB – O único livro que não poderá deixar de ser lido é a Bíblia Sagrada. Mesmo assim, eu estou em débito com Deus. Leio muito pouco. 3. Qual o papel do escritor em Santana do Ipanema? RB – Escritora e pesquisadora Maria do Socorro Ricardo, conforme você sabe, Santana do Ipanema sempre foi celeiro de escritores, desde aqueles que, como eu, Remi Bastos, debruça-se nos sentimentos extraídos de uma experiência de vida própria vivida no Sertão, sem extrapolar uma escrita propriamente dita. E também os que vão adiante na divulgação de seus trabalhos, a exemplo de Djalma Carvalho, Lúcia Nobre, Clerisvaldo B. Chagas, você mesma etc. Então, eu vejo o papel do escritor santanense, com raras exceções, de burilar a escrita num vasto campo de inspiração; mas, sem contar ou receber o apoio ou incentivo das "pessoas". 4. Com quais palavras você definiria você? RB – Eu sou uma pessoa simples, humilde, emotivo, saudosista, às vezes, tímido e, às vezes, participativo, que gosta de externar através da escrita tudo aquilo que me transporta ao presente, aos amigos de infância, à casa e à rua onde vivi minha adolescência, os vizinhos, o Panema. Enfim, eu sou Remi de Santana dos Meus Amores. 5. Alagoas sempre se orgulhou do seu nome no cenário literário mundial. Hoje se vislumbram novos talentos com a força dos antigos? RB – É verdade. Jorge de Lima, Graciliano Ramos, Brenno Accioly e tantos outros compõem o expoente literário de Alagoas; no entanto, não posso conceituar, atualmente, novos valores; porém, acredito que novos talentos estão surgindo lentamente, e tudo dependerá de oportunidade. 6. Eu publiquei que Santana é Terra de Escritores. Quais sugestões você apontaria aos novos escritores santanenses? RB – É como lhe disse anteriormente: o sucesso ou o desabrochar de novos valores no campo literário de nossa terra depende de incentivo. Nada adiantará escrever, apenas escrever e não ter a oportunidade de mostrar ao público a essência desse projeto. Se houvesse uma ação mais participativa dos nossos gestores, certamente que eu apostaria no talento de novos talentos, pela forma como são abordados os temas. São eles Fernando Campos, Fábio Campos, Lúcia Nobre, Luiz Antônio de Farias, entre outros. 7. É verdade que os alunos das escolas santanenses estudam a literatura dos escritores de Santana do Ipanema? RB – Não tenho conhecimento. 8. Os livreiros, editores, bibliotecas e escolas do ensino básico veem o livro de quais maneiras? RB – O que posso informar é que existe um movimento, por parte do Maltanet, com a colaboração de alguns muralistas santanenses. E de que está sendo levado livro de escritores santanenses, a exemplo do “Sonho de Alice", de Lúcia Nobre, e mais alguns escritores, às escolas municipais, numa forma de incentivo à leitura. 9. A cidade poderia recepcionar os visitantes com placas com nomes dos escritores e ruas e praças que os homenageassem? RB - Esta seria uma sugestão importante e capaz para dignificar o nosso patrimônio literário. 10. Os poderes santanenseS Executivo e Legislativo têm compromisso com artistas locais? RB – Não tenho conhecimento, embora acredite na disponibilidade dos mesmos se assim necessitar. 11. Há uma resistência histórica da mídia em publicar os textos dos poetas e escritores. Santana participa desta mesma resistência ou programas radiofônicos leem poesias, crônicas e contos de seus escritores durante a programação? RB – Houve uma época em Santana em que se ouvia com mais constância, através de rádio local leituras de trechos poéticos escritos por santanenses. Atualmente, o maior divulgador é o portal maltanet (e os portais santanoxente, sertao24horas e blogueiros identificados) além de duas emissoras que sempre levam ao ar músicas de compositores santanenses, inclusive as minhas. Não acredito que exista em Santana do Ipanema resistência história que dificulte a divulgação de trabalhos literários locais. Tudo acontece lentamente. Para você ter uma ideia, Maria do Socorro Ricardo, a marchinha carnavalesca que compus em 1968, até hoje o santanense canta nos finais de eventos. 12. Como os escritores devem ser lembrados? RB – Através de eventos, tais como: exposições literárias de suas obras, divulgação de seus trabalhos pela mídia local numa forma de conquistar e atrair novos talentos. Penso assim. 13. Uma academia de letras não existe apenas para os seus participantes; geralmente, as academias de letras são fundadas para divulgação da literatura, para fazerem os escritores chegarem nas mãos do povo. Quais são as preocupações políticas da agremiação literária da qual você faz parte? RB – Não sei como se comportam atualmente as agremiações literárias em Santana. Mesmo porque, Socorro, eu vivo um pouco ausente. O que me chega ao conhecimento vem do Mural de Recados do Maltanet, nos blogs e no link Literatura. 14. Alguns escritores ficam em um único livro; outros passam a vida fazendo os seus livros. Como você avalia o fazer livros? RB – O único exemplo que posso citar, e com muita tristeza, é sobre o escritor santanense Clerisvaldo B. Chagas, que estacionou os seus escritos tão ricos em realidade. Tudo por falta de apoio. Não sei bem se o termo seria correto; mas, Santana do Ipanema já poderia pensar em formar a sua academia de letras. 15. Quais os livros que você reler? RB – Ultimamente tenho estado relapso comigo mesmo, talvez por conta das viagens que realizo no meu trabalho como engenheiro agrônomo, e que me deixa um tanto desmotivado à leitura. 16. Quais são os seus poetas de ocasião e os seus poetas de paixão? RB – Não tenho poetas de ocasião e de paixão. Procuro sempre ler aquilo que me toca e comove. Gosto de ler as poesias de José Limeira, o Poeta do Absurdo, Patativa do Assaré, José da Luz etc. E, quanto a escritores, gosto de ler as obras de Graciliano Ramos. 17. O que é poesia em sua concepção poética? RB – Poesia para mim é o retrato da alma. Ninguém consegue versejar se não estiver com a alma receptível. (...) Adeus fazenda querida Berço dos meus avós, Hoje vivemos sós Num oceano de saudade (...) Do poeta Remi Bastos. É também deste poeta o Hino de Santana do Ipanema. Onde, lembrada ou homenageada em meio ao hino, a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, talvez o poema do qual os poetas mais se aproximam com paródias, intertextualidades (versos interagindo com outros versos, poetas que interagem ou se alimentam de uma fonte original), desafios, desconstrução, reconstrução, identificação, porque se descortinou com “Canção do Exílio” uma saudade eterna à Pátria. Todo o Romantismo presente na obra do maranhense Gonçalves Dias refloresce em um romantismo contemporâneo dos poetas na história do tempo presente que se aproximam da “Canção do Exílio”. Santana do Ipanema: Torrão querido, pedacinho do meu Brasil; És a Rainha do Sertão alagoano, Desta pátria mãe gentil. (BIS) Tua história enaltece nossa gente Com bravura e amor-febril. Padre Francisco Correia e Martinho Vieira Rego: Pioneiros nesta terra varonil. Tua bandeira simboliza nossas cores, As tuas praças, esse rio, nossos amores; O teu progresso eternamente a florescer. Sou sertanejo, santanense até morrer! (BIS) Minha terra tem palmeiras, Nossos campos têm mais flores Onde canta o sabiá. Nosso céu tem mais estrelas Onde nuvens passageiras Dão espaço ao luar. O teu passado de glória Está vivo em nossa memória, Teus filhos hão de aprender. É mais forte o meu desejo de dizer Sou sertanejo, santanense até morrer! (BIS) Os poetas Fábio Campos e Remi Bastos (vide youtube) são duas extremidades de tempo atualmente ligadas nos versos publicados em Santana do Ipanema, alguns dos quais postados no portal maltanet. A mesma Santana do Ipanema do poeta José Geraldo Wanderley Marques, Clerisvaldo B. Chagas, Marcello Ricardo Almeida (vide youtube). A lira entregue aos poetas santanenses se populariza nos versos de Remi Bastos, compositor do hino à cidade de “seus amores”, a poesia deste poeta tem um quê de eternidade. Maria do Socorro Ricardo –www.historiografiaafricanas.blogspot.com |
Entrevista com Mariana Botelho
o dia 14 de março é comemorado o Dia Nacional da Poesia. A data criada foi uma homenagem ao poeta brasileiro Antônio Frederico de Castro Alves (14/03/1847-1871). Para comemorar esse maravilhoso dia, o Poucas e Boas da Mari entrevistou a “poeta blogueira” Mariana Botelho. Mariana é formada em educação física, mas o interesse pela poesia surgiu de forma natural. A poeta publica seus poemas no blog Suave Coisa. Leia a entrevista na íntegra.
01. Mariana, você escreve poesias desde os 12 anos de idade. Como surgiu o interesse por elas?
Surgiu de maneira muito natural, na escola mesmo, logo quando tive o primeiro contato com a literatura, com a possibilidade de criar e falar através dela. Ficava encantada com as histórias dos poetas clássicos. Adorava passar horas conversando com a moça da biblioteca. Não me esqueço do espanto dela quando eu procurei pela primeira vez um livro do Fernando Pessoa. Ela sorriu e perguntou: “é para o seu pai?”
02. Você é uma jovem poeta, mas escreve como “gente grande”. De onde vem essa maturidade na escrita?
A verdade é que ainda não me sinto madura na escrita. E espero que não me sinta nunca (rs). Acho que há uma maturidade relativa, mas isso acaba acontecendo mesmo com quem escreve e é sempre muito bom quando notamos que isso acontece. Eu enxuguei minha poesia e acho que o poeta sempre ganha com isso. Mas aprendi lendo outros poetas e, principalmente convivendo com outros poetas, ouvindo o que eles têm a dizer. Ainda ouço e pra mim é sempre enriquecedor.
03. Quais são suas influências e qual (is) dela(s) “aparece(m)” com frequência em seus versos?
Hoje é difícil eu mesma perceber as influências no que escrevo. Há uns quatro anos, eu diria que o Quintana, sem dúvida, estava presente na minha poesia. Hoje já não o vejo, mas vejo muitos outros se misturando à minha escrita. Não tenho dúvida que se pudesse ver traços do poeta mineiro Adair Carvalhais Jr. em diversos poemas meus. Comecei a ler e fiquei mesmo impressionada com o ritmo do poema dele, com a lapidação que ele dá ao poema. Foi uma redescoberta da poesia. Agora, já absorvi um bocado dessa influência também e acho que coloquei, nessa influência, minha identidade.
04. Como “vem” a inspiração para a sua construção poética? Ou é somente “construção”?
Vem de olhar e absorver. Vem do espanto com as coisas. Há espanto em sentir, perceber-se sentindo, aceitar isso. Um dia, quando acordava, abri a janela e me espantei com aquela vista. Disse: “meu Deus! Como posso ter isso na minha janela?” Nasceu um poema na mesma hora. Acho que a última coisa que eu penso é na “construção”. O poema vem de um gole, se derrama de uma vez só e é uma sensação sem par. Depois de um tempo releio, tento me afastar dele pra ver se posso mexer em alguma coisa. Dificilmente eu mexo ou mudo alguma coisa, ainda não aprendi a paciência pra lapidar o poema.
05. Poeta de internet, você publica seus textos no blog “Suave Coisa” (http://quelevequenada.blogspot.com/). Haveria outra possibilidade de publicação caso não houvesse esse meio tecnológico? As editoras fecham “os olhos” para novos talentos ou para essa vertente literária?
Acho que nunca pensei nisso. A idéia do blog surgiu mesmo entre amigos que gostavam de escrever e moravam longe. Mas eu sempre fui muito tímida, então não pensava mesmo em publicar num outro lugar. Só agora amadureço a idéia de um livro, nunca me senti pronta pra isso. Talvez houvesse outros meios: algum jornal com uma coluna literária. Mas não sei mesmo dizer. A questão das editoras é com os leitores, creio eu. Poesia não é sempre uma leitura fácil, não é o que as pessoas mais procuram. A questão é comercial.
06. Como encarou a nova regra ortográfica brasileira, já que você é uma artista que brinca com as palavras?
Ainda não aderi ao acordo ortográfico (rs). Vai ser bem difícil acostumar com essas mudanças, a meu ver, um tanto inúteis. Se eu ou você pegássemos um livro de Portugal, certamente entenderíamos sem problemas.
07. Em uma entrevista para o PBM, o poeta Cláudio Bento disse que um dos problemas para as crianças e jovens não se sensibilizarem mais com a poesia está na falta de incentivo dos professores e também do poder público. Você concorda com a opinião do poeta?
Sua formação escolar contribuiu para com o seu gosto pela poesia?Concordo, sim. Há pouco incentivo. As pessoas precisam ter contato para gostar, muita gente pouco ouve falar do assunto. É um grande círculo vicioso. Os pais não tiveram incentivo, os filhos não terão. Minha formação escolar contribuiu, eu tive duas professoras em especial, que eram apaixonadas por poesia e apreendi um pouco disso. Mas meu pai me fazia ler em casa, me falava sobre alguns poetas e eu ficava curiosa, buscava mais. Acho que o problema não é da escola em si, mas da educação de um modo geral. Enfim, creio que há vários fatores que interferem nisso.
08. Quem lê poesia hoje?
Poucas pessoas. Quem escreve, quem estuda, quem cresceu aprendendo a gostar. Com exceções de quem descobriu que tem sensibilidade pra poesia depois de grande…
09. Uma mensagem para os frequentadores do site Poucas e Boas da Mari.
Um abraço a todos e… leiam poesia!
Fotos: Divulgação
Quer ter a entrevista com a poeta Mariana Botelho em seus arquivos? Clique aqui entrevista-com-mariana-botelho (para abrir o arquivo .pdf precisa ter o programa Adobe Reader – Imprima se necessário, preserve o meio ambiente)
Entrevista com o poeta Donizete Galvão
Luz no breu: entrevista com poeta Donizete Galvão
Jardel Dias Cavalcanti
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Robert Musil definiu o poeta "como o homem que tem mais consciência do que qualquer outro da irremediável solidão do eu no mundo e entre os homens". É a partir desta experiência fundamental, onde não há terra salvadora, que cada poeta cria a particularidade de sua obra.
A poesia de Donizete Galvão busca revelar um mundo "que encene em sua carne/ o espetáculo da queda" (Golem). Todos os elementos que habitam sua obra (frutos, plantas, animais domésticos, paisagens, jornais, obras de arte, etc.), embora guardem um valor de materialidade, não devem ser vistos por si mesmos. São sinais da angústia que os percebe, ou melhor, os cria.
Isso não quer dizer que sua poesia seja, por isso, marcada pela negação, pela recusa, pela destruição ou pelo fracionamento. Atente-se para o poema "Figos" (A carne e o tempo): embora a destruição dos figos seja irremediável, eles aparecem no apogeu de sua força, "exatos em sua configuração", exibindo sua "violácea florescência íntima". O espetáculo desta contradição in natura (como, talvez, uma metáfora da força da vida e de sua posterior destruição) é espiritualizada e intensificada na forma sensível da poesia.
É alimentando-se dessa contradição que Donizete cria uma poesia que faz coabitar "trigal de luz" e "morada de sombras", "escamas de cristais" e "hálito de lodo". Nesse sentido, está o poeta próximo ao sublime Van Gogh, que fez um quarto miserável e um par de botas apodrecidas tornarem-se poesia e uma noite angustiosa promover a dança das estrelas no cosmos.
Diante das vertigens que o mundo proporciona no seu jogo de "sombras", a poesia de Donizete se faz "reluzente", "vai abrindo trilhas", faz ouvir "o rumor do cristal" e, como "Os olhos de Anna Lívia" (Do silêncio de pedra), mostra "luz no breu."
Para Donizete é entre a tensão do "desisto/ resisto" que brota o "existo". Ele sabe que está à margem de um "rio morto/ rio fétido/ rio podre/ rio lodo". Mesmo assim, e ainda que melancolicamente, faz surgir desta margem "uma garça" - é sua poesia: "musgo de abismo que o sopro/ de sua voz alcança e macera" ("Sim, one").
Abaixo, entrevista que o poeta Donizete Galvão nos concedeu por e-mail.
1 - O que o fez tornar-se poeta? Pode apontar algumas razões?
DONIZETE: Tenho enorme dificuldade em aceitar essa denominação de poeta. Acho que nunca escrevi que sou poeta, quase sempre digo que sou autor de livros de poesia. Demorei muito a aceitar uma vocação tão difícil, tão dolorosa. Tanto que publiquei tarde o meu primeiro livro, Azul navalha, aos 33 anos. Parece-me que não há muita escolha. As razões são as de sempre: sentimento de inadequação, insensatez, um mal-estar interno que busca uma válvula de saída. Cioran diz que há outras saídas como a santidade, o vício, o suicídio. Eu procurei na poesia uma maneira de suportar o mundo. Há uma crônica muito bonita do Otto Lara Resende chamada A maldição da poesia onde ele diz que quando um moço aparecia dizendo que era poeta o coração dele apertava. Ele cita Claudel para quem a vocação artística dava medo, era perigosa, gerava frustração e desequilíbrio. Enfim, Claudel não desejava para ninguém o dom da poesia. Acho que a gente não chega a escolher, é arrebatado pela poesia. Parece romântico, mas é no que acredito.
2 - No seu livro A Carne e o Tempo existe um poema, denominado "Retrato de Artista", que trata da questão do artista (misto de Joyce e Wagner), que atropela qualquer convenção apenas para que sua arte exista. Comente essa "situação" do artista e o poema citado.
DONIZETE: Sempre tive uma certa implicância com a figura do artista, que é um tanto desmiolado sacrifica a família, inferniza os amigos, rouba idéias. Entretanto, depois de ler a biografia que Richard Elmann fez de Joyce compreendi que o artista precisa mesmo dessa carapaça para sobreviver em meio ao caos. Ele não pode ter autocrítica. Precisa acreditar na grandeza do que está fazendo, mesmo que desagrade a todos. Os artistas quase nunca são bons moços. Penso no caso de Thomas Mann, por exemplo, que usou e abusou dos artifícios de retratar amigos com crueldade em seus livros. A arte tem suas exigências, não há muito espaço para a inocência. Eu sou mais apolíneo. Tenho uma dificuldade em aceitar o lado escuro. O poema é para aceitar esse outro lado, mais anárquico e sombrio.
3 - O corpo é um dos elementos mais freqüentes na sua poesia, não apenas o corpo humano, mas o dos animais ou quando ele surge em metamorfoses várias e sentidos metafóricos constantes. Isso aparenta um grande desejo de aproximação com o mundo orgânico, que se realiza na sua poesia através de epifanias. Como se dá esse encontro entre o poeta (e seu fazer poético) e as entranhas do mundo vivo?
DONIZETE: Talvez essa aproximação com o mundo orgânico venha da infância, pois fui criado em sítio sempre muito próximo desses ciclos de vida, do nascimento e morte dos bichos, até mesmo sem nenhum sentimentalismo. Eu nem sei mesmo se este encontro chega a acontecer plenamente. Sinto que a gente persegue a poesia, mas que ela passa como um vento. Ficam apenas uns fiapos de luz. Acho que essas epifanias são raras. São momentos de iluminação em que a luz de Apolo, como diria María Zambrano, nos toca. Dura muito pouco. A maior parte do tempo é um tatear na escuridão. Acho que ligação com a natureza é porque tenho dificuldade em lidar com uma poesia totalmente abstrata. Tenho necessidade de objetivação, de concretude, de falar de coisas, objetos, ferramentas, bichos, plantas. Eu não sou um poeta de imaginário rico, inventivo. A poeta uruguaia Circe Maia disse numa entrevista que ela tem pé de chumbo. Acho que eu também. Não consigo voar muito. Por isso, já escrevi que eu nunca saí dessa Minas que nunca termina.
4 - Existe em todos os seus livros uma aproximação entre poesia e artes plásticas. Pode comentar esse encontro?
DONIZETE: Se você permitir, vou dar uma resposta mais longa para evitar alguns equívocos e não soar pretensioso. Em primeiro lugar, sou praticamente um leigo em artes plásticas. Não tenho conhecimento teórico ou técnico para falar do assunto com a desenvoltura de quem realmente é um conhecedor. Minha aproximação é sempre intuitiva e emocional. Eu creio que a pintura toca uma região de nossa sensibilidade onde a palavra não chega. Por isso, é tão difícil expressar essas sensações com as palavras.
Mesmo quem tem o poder de se expressar muito bem chega ate determinado ponto a partir do qual não há muita coisa a ser dita. Entendo a pintura como uma linguagem poética altamente concentrada que pega direto na veia. Tenho procurado ler sobre alguns pintores que me interessam, mas é coisa de iniciante. José Paulo Paz me recomendou um livro, que ele traduziu, que me foi muito útil. ÉLiteratura e Artes Visuais de Mario Praz.
O meu segundo livro, As faces do rio, começou a ser escrito a partir de um impulso que tive ao ver, em um livro, "Ocean Greyness" de Jackson Pollock. Aquele quadro virou uma espécie de leimotiv. Só depois disso é que fui ver outros quadros e comprar livros sobre Pollock. No caso de Yves Klein quando vi a sala dele na Bienal fiquei nas nuvens. Voltei umas cinco vezes naquela sala como que atraído por um campo imantado.
O que vejo em determinados pintores são uns vasos comunicantes com a poesia e um certo sentido espiritual, um arte que toca o campo do sagrado. Em Paul Klee, Kandinsky, Yves Klein e Anish Kapoor eu percebo essa relação profundamente espiritual com a arte. Por isso, escrevi aquele poema chamado Quarteto em K. Com os pintores brasileiros sobre os quais tenho escrito a relação é a mesma. São artistas que me emocionaram, que tocaram uma corda escondida. Acontece com o trabalho de Renina Katz, Paulo Pasta, Niura Bellavinha, Germana Monte-Mór, Nuno Ramos. Com o Rogério Barbosa, pintor que mora em Pouso Alegre, tenho a proximidade da amizade também. Ele fez alguns desenhos muito bons para o meu próximo livro que se chamaMundo mudo. Agora, sinceramente, não saberia dizer porque um quadro de Paulo Pasta me emociona e a de um outro pintor, por exemplo Ianelli, me deixa indiferente.
Nunca procurei nesses escritos me apropriar de procedimentos próprios da pintura. Acho muito difícil, quase impossível. Os procedimentos da pintura são muito mais radicais. Por exemplo, a pintura cubista é muito mais radical e difícil do que uma prosa que pretenda ser cubista. Acho que o trunfo da pintura está naquilo que Klee chama de tornar visível o invisivel, nas relações entre o mundo exterior e o espírito. Acho que Rilke tenha sido o poeta que mais compreendeu pintura e usou de seus procedimentos, principalmente nos Poemas-coisa. Ele era um craque e nós somos uns pernas-de-pau.
Esses poemas que escrevo sobre artes já foram bastante criticados. Meu interesse permanece. São exercícios de admiração, uma maneira de me aproximar da obra. São aquelas aragens do sagrado de que falava Guimarães Rosa.
5 - Que poetas te marcaram mais profundamente?
DONIZETE: A coisa funciona em ciclos. Há poetas que nos influenciam em determinada fase da vida e depois a gente continua admirando, mas sem o mesmo entusiasmo. Acho que minhas influências são basicamente as mesmas de todos da minha geração principalmente Drummond e Murilo Mendes. Um poeta que é pouco citado mas que admiro desde a adolescência é Emílio Moura. Também foi fundamental para mim a leitura de A luta corporal do Ferreira Gullar, ainda nos anos 60. Foi mesmo um alumbramento ao ler poemas como aquele sobre a pêra. Eu acompanhava muito os poetas que eram publicados pelo Suplemento Literário de Minas Gerais como a Henriqueta Lisboa.
Fora os brasileiros, eu gosto muito de W.B. Yeats, Elizabeth Bishop, Eugenio Montale, Ungaretti, dos gregos Kafávis e Seféris. A descoberta mais tardia que fiz foi de Francis Ponge. Para mim, Métodos do Ponge é um livro que retomo sempre. Outro livro que leio e releio é Ascese, de Kazantzákis. Há tantas outras vozes entrelaçadas que acabam constituindo uma espécie de família espiritual.
6 - Que poetas brasileiros contemporâneos você acha mais importantes?
DONIZETE: Há tantos nomes. Eu sou como aquele poema do Álvaro de Campos em que ele simpatiza com tudo. Não sou nada coerente nas minhas escolhas, nem tenho juízos definitivos. Como não sou poeta-crítico tenho a maior liberdade de gostar, sem pensar muito em tendências. Não sou muito chegado em polêmicas e debates.
Há uma boa safra de poetas jovens como Paulo Ferraz, Tarso de Melo, André Luiz Pinto, Rodrigo Petrônio, todos com menos de 30 anos. Acho que podemos esperar grandes obras deles. Muito já têm mostrado ótimos resultados. O Paulo Ferraz ganhou o prêmio Nascente da USP com um livro muito bom. Ele fez um poema longo De novo nada que é um tour de force. Eu procuro acompanhar a produção deles através das revistas e dos livros que publicam.
Há dois poetas que têm lugar muito especial no meu coração. O José Paulo Paes e a Dora Ferreira da Silva. Ambos muito generosos, com muita sabedoria, e com um caráter nobre. A Dora está muito ativa, tem um livro novo pronto.
Posso estar esquecendo alguns nomes, mas admiro muito o Armando Freitas Filho, o Rubens Rodrigues Torres Filho, Antônio Cícero, Alberto Pucheu, Carlito Azevedo, Claudia Roquette-Pinto, Fábio Weintraub. Tem também o Ruy Proença que considero um poeta extremamente sutil, refinado, imaginativo, com um senso de humor muito particular.
7- Você vê algum elemento aproximativo entre a sua poética e a de Ronald Polito - já que publicaram juntos Pelo Corpo?
DONIZETE: Olha, acho que o que me aproxima do Ronald é uma grande admiração que tenho pelo trabalho dele. Sempre gostei muito da Orides Fontela e acho que o Ronald tem uma poética tão forte quanto a dela. O minimalismo dele tem tutano, tem uma tensão permanente. A maneira como ele trata do corpo, da exasperação do homem dentro desse corpo, me interessa muito. Além disso, desde que li Meu corpo e eu, do René Crevel, fiquei com a idéia de escrever alguma coisa com esse tema. Acho que conseguimos um diálogo interessante numa área de interseção entre duas poéticas diferentes, Interesso-me por poéticas diferentes da minha. Estou fazendo um livro com André Luiz Pinto que chamamos de Litanias. O André tem uma poesia muito diversa da minha, a dele é bastante expressionista e sombria.
Li a entrevista que o Ronald concedeu a você, serviu para conhecer melhor as idéias dele. Agora, não compartilho da extrema negatividade e incomunicabilidade que ele sente. Ele consegue ser muito mais pessimista que eu. O que há de bonito é que os poetas podem se entender acima dessas divergências. Acho que há um afeto, um veio mais forte, que une os poetas mesmo que passem grande parte do tempo discordando.
8- Você poderia apontar alguma mudança na sua poesia de seu primeiro livro Azul navalha (1988) até o último Pelo Corpo (2002)?
DONIZETE: Como dizia o José Paulo Paes, a cara foi ficando pior, mas a poesia, pelo menos, acho que melhorou um pouco. O lirismo passou a ser mais objetivo, mais ligado ao corpo, aos bichos e às coisas do que a instantâneos do quotidiano. Há poucos poemas do primeiro livro dos quais gosto. Ler meus próprios poemas me causa desprazer. São muitas tentativas e poucas vezes sentimos que captamos realmente a poesia. Entretanto, embora busque sempre fazer o melhor, acredito que a poesia é feita também de impurezas, imperfeições e riscos. Minha poesia gosta do que não é poético, dos restos, dos restolhos. Também procuro abrir mão do que considero enfeite ou acessório.
O primeiro livro é mais uma coletânea de poemas de quase uma década. A partir do segundo, procurei trabalhar com projetos mais amarrados. A partir do nome e das epígrafes, procuro criar um campo magnético que atraia os poemas. Não chega a ter um rigor construtivista, uma estrutura arquitetônica muito definida, mas todos os livros têm um eixo. Por isso, nunca mudo os nomes e nem as epígrafes. Seria como tirar as bases do livro.
9 - Seu texto "O poeta em pânico", publicado em Do Silêncio da Pedra, soa como um desabafo. Não lhe parece querer demais conciliar a poesia com o mundo ordinário em que vivemos?
DONIZETE: Você tem razão. Hoje acho que não publicaria aquele texto junto com o livro. O ideal seria publicá-lo em outro veículo. Como não tinha espaço, resolvi colocar como um posfácio. É preciso contextualizar. Na época, final dos nos 80, eu sentia uma espécie de claustrofobia. As editoras eram poucas. Publicar era caríssimo. Hoje, há mais de dez revistas de poesia, antologias, zines, revistas virtuais, sites. Até mesmo na grande imprensa houve uma abertura de espaço. Eu mesmo publiquei poemas no Mais e o Elio Gaspari teve a generosidade de publicar poemas meus na sua coluna que circula em importantes jornais do país. Dentro dos padrões modestos da poesia, a visibilidade hoje é maior. Quem publicou nos anos 90 não sabe como foi complicado ter alguma visibilidade nos 80.
Agora, não tenho ilusões. O conflito da poesia com o mundo em que vivemos é radical. Não poderia ser de outro modo. Não há conciliação possível. O que a poesia pode fazer é renegar permanentemente o utilitarismo do mundo moderno. Pode ser que a gente não mude o mundo, mas pelo menos há uma recusa em ser moldado.
10 - Parafraseando seu poema "Órfico", do livro Pelo Corpo, eu pergunto: vale uma vida, vale uma morte, a poesia?
DONIZETE: Fico na dúvida. Se o resultado for uma obra de qualidade, para o bem da poesia, acho que vale sim. Acontece que estamos sempre na corda bamba, sem certeza de nada. Nunca sabemos se o que escrevemos terá alguma permanência. O jeito é fazer como Orfeu e aceitar o risco.
2 Poemas e "O poeta em pânico" de Donizete Galvão:
FIGOS
cesta de figos maduros
exatos na sua configuração
atente-se para os veios roxos
a camada de pó sobre a pele
tire a áspera membrana:
surge a derme branca
a polpa violácea
florescência íntima
secreta granulação
a maturidade é experimento breve
ontem a base ainda vertia leite
amanhã a carne estará macerada
devore-a agora
na última estação
um dia
ela poderá amanhecer seca
nua
morta
(de A Carne e o tempo)
***
RETRATO DE ARTISTA
Que Deus lhe dê uma raiz bem funda,
para que não o balance o vento das cidades.
Que, para onde quer que vá,
corra ao seu lado o rio de sua aldeia.
Que vagueie exilado,
de cidade em cidade,
de emprego em emprego,
experimentando o gosto do provisório.
Que sua mulher despreze sua obra,
o pai morra sem sua visita
e a filha fique esquizofrênica.
Que lhe caiam os dentes
e lhe cheguem as dores, as colites, úlceras.
Que o ceguem em doze prestações.
Que você sugue dos amigos a alma,
a cultura, as histórias, o bolso
e lhes dê em troca
desprezo e indiferença.
Que colecione despejos,
os proprietários lhe virem o rosto
e os credores batam à sua porta.
Que você se tenha em alta conta,
embora seus sapatos estejam furados
e o presenteiem com roupas usadas.
Que você seja sustentado
pela filantropia de milionárias.
Que gaste em vinho o salário do irmão
e caia na calçada, sangre e precise de ajuda.
Que o atormentem a ânsia, remorsos, trovões.
Que você tenha olhos só para si.
Que mendigue a atenção dos jornais,
busque em vão por críticas e resenhas,
espere horas em saletas de editoras
e cobre elogios de quem chega.
Que de sua pele tão fina,
nasça uma carapaça anti-humana,
ovo com casca de aço,
onde baila em clara
a tenra e frágil gema.
(de A carne e o tempo)
Trechos de "O poeta em Pânico", do livro Do silêncio da pedra
A poesia, além de inútil, é também indesejada.
O poeta, entretanto, insiste em escrever seus poemas. Não lhe resta outra alternativa. Poderia buscar o suicídio, a santidade, o vício: estas "outras tantas formas da falta de talento", de que falou Cioran. Está preso a uma obsessão nunca sublimada. Quer, através da língua, assegurar a permanência enquanto tudo se desfaz. Usa de artifícios, filtra e depura para transformar o desprezo, a humilhação e a decomposição do corpo e da mente em matéria poética. Entre tantos indiferentes, deve haver uns poucos que terão ouvidos para essa outra voz.
Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 17/2/2003
Jardel Dias Cavalcanti
+ 3 Comentário(s)
O poeta Donizete Galvão é autor de seis livros de poesia: Azul navalha(S.P.: T. A Queiroz, 1988), As faces do rio (S.P: Água Viva, 1991), Do silêncio de pedra (S.P: Arte Pau-Brasil, 1996), A carne e o tempo(S.P: Nankin, 1997). Ruminações (S. P: Nankin, 1999) e Pelo Corpo(junto com Ronald Polito - S.P: Alpharrabio Edições, 2002).
***
Robert Musil definiu o poeta "como o homem que tem mais consciência do que qualquer outro da irremediável solidão do eu no mundo e entre os homens". É a partir desta experiência fundamental, onde não há terra salvadora, que cada poeta cria a particularidade de sua obra.
A poesia de Donizete Galvão busca revelar um mundo "que encene em sua carne/ o espetáculo da queda" (Golem). Todos os elementos que habitam sua obra (frutos, plantas, animais domésticos, paisagens, jornais, obras de arte, etc.), embora guardem um valor de materialidade, não devem ser vistos por si mesmos. São sinais da angústia que os percebe, ou melhor, os cria.
Isso não quer dizer que sua poesia seja, por isso, marcada pela negação, pela recusa, pela destruição ou pelo fracionamento. Atente-se para o poema "Figos" (A carne e o tempo): embora a destruição dos figos seja irremediável, eles aparecem no apogeu de sua força, "exatos em sua configuração", exibindo sua "violácea florescência íntima". O espetáculo desta contradição in natura (como, talvez, uma metáfora da força da vida e de sua posterior destruição) é espiritualizada e intensificada na forma sensível da poesia.
É alimentando-se dessa contradição que Donizete cria uma poesia que faz coabitar "trigal de luz" e "morada de sombras", "escamas de cristais" e "hálito de lodo". Nesse sentido, está o poeta próximo ao sublime Van Gogh, que fez um quarto miserável e um par de botas apodrecidas tornarem-se poesia e uma noite angustiosa promover a dança das estrelas no cosmos.
Diante das vertigens que o mundo proporciona no seu jogo de "sombras", a poesia de Donizete se faz "reluzente", "vai abrindo trilhas", faz ouvir "o rumor do cristal" e, como "Os olhos de Anna Lívia" (Do silêncio de pedra), mostra "luz no breu."
Para Donizete é entre a tensão do "desisto/ resisto" que brota o "existo". Ele sabe que está à margem de um "rio morto/ rio fétido/ rio podre/ rio lodo". Mesmo assim, e ainda que melancolicamente, faz surgir desta margem "uma garça" - é sua poesia: "musgo de abismo que o sopro/ de sua voz alcança e macera" ("Sim, one").
Abaixo, entrevista que o poeta Donizete Galvão nos concedeu por e-mail.
1 - O que o fez tornar-se poeta? Pode apontar algumas razões?
DONIZETE: Tenho enorme dificuldade em aceitar essa denominação de poeta. Acho que nunca escrevi que sou poeta, quase sempre digo que sou autor de livros de poesia. Demorei muito a aceitar uma vocação tão difícil, tão dolorosa. Tanto que publiquei tarde o meu primeiro livro, Azul navalha, aos 33 anos. Parece-me que não há muita escolha. As razões são as de sempre: sentimento de inadequação, insensatez, um mal-estar interno que busca uma válvula de saída. Cioran diz que há outras saídas como a santidade, o vício, o suicídio. Eu procurei na poesia uma maneira de suportar o mundo. Há uma crônica muito bonita do Otto Lara Resende chamada A maldição da poesia onde ele diz que quando um moço aparecia dizendo que era poeta o coração dele apertava. Ele cita Claudel para quem a vocação artística dava medo, era perigosa, gerava frustração e desequilíbrio. Enfim, Claudel não desejava para ninguém o dom da poesia. Acho que a gente não chega a escolher, é arrebatado pela poesia. Parece romântico, mas é no que acredito.
2 - No seu livro A Carne e o Tempo existe um poema, denominado "Retrato de Artista", que trata da questão do artista (misto de Joyce e Wagner), que atropela qualquer convenção apenas para que sua arte exista. Comente essa "situação" do artista e o poema citado.
DONIZETE: Sempre tive uma certa implicância com a figura do artista, que é um tanto desmiolado sacrifica a família, inferniza os amigos, rouba idéias. Entretanto, depois de ler a biografia que Richard Elmann fez de Joyce compreendi que o artista precisa mesmo dessa carapaça para sobreviver em meio ao caos. Ele não pode ter autocrítica. Precisa acreditar na grandeza do que está fazendo, mesmo que desagrade a todos. Os artistas quase nunca são bons moços. Penso no caso de Thomas Mann, por exemplo, que usou e abusou dos artifícios de retratar amigos com crueldade em seus livros. A arte tem suas exigências, não há muito espaço para a inocência. Eu sou mais apolíneo. Tenho uma dificuldade em aceitar o lado escuro. O poema é para aceitar esse outro lado, mais anárquico e sombrio.
3 - O corpo é um dos elementos mais freqüentes na sua poesia, não apenas o corpo humano, mas o dos animais ou quando ele surge em metamorfoses várias e sentidos metafóricos constantes. Isso aparenta um grande desejo de aproximação com o mundo orgânico, que se realiza na sua poesia através de epifanias. Como se dá esse encontro entre o poeta (e seu fazer poético) e as entranhas do mundo vivo?
DONIZETE: Talvez essa aproximação com o mundo orgânico venha da infância, pois fui criado em sítio sempre muito próximo desses ciclos de vida, do nascimento e morte dos bichos, até mesmo sem nenhum sentimentalismo. Eu nem sei mesmo se este encontro chega a acontecer plenamente. Sinto que a gente persegue a poesia, mas que ela passa como um vento. Ficam apenas uns fiapos de luz. Acho que essas epifanias são raras. São momentos de iluminação em que a luz de Apolo, como diria María Zambrano, nos toca. Dura muito pouco. A maior parte do tempo é um tatear na escuridão. Acho que ligação com a natureza é porque tenho dificuldade em lidar com uma poesia totalmente abstrata. Tenho necessidade de objetivação, de concretude, de falar de coisas, objetos, ferramentas, bichos, plantas. Eu não sou um poeta de imaginário rico, inventivo. A poeta uruguaia Circe Maia disse numa entrevista que ela tem pé de chumbo. Acho que eu também. Não consigo voar muito. Por isso, já escrevi que eu nunca saí dessa Minas que nunca termina.
4 - Existe em todos os seus livros uma aproximação entre poesia e artes plásticas. Pode comentar esse encontro?
DONIZETE: Se você permitir, vou dar uma resposta mais longa para evitar alguns equívocos e não soar pretensioso. Em primeiro lugar, sou praticamente um leigo em artes plásticas. Não tenho conhecimento teórico ou técnico para falar do assunto com a desenvoltura de quem realmente é um conhecedor. Minha aproximação é sempre intuitiva e emocional. Eu creio que a pintura toca uma região de nossa sensibilidade onde a palavra não chega. Por isso, é tão difícil expressar essas sensações com as palavras.
Mesmo quem tem o poder de se expressar muito bem chega ate determinado ponto a partir do qual não há muita coisa a ser dita. Entendo a pintura como uma linguagem poética altamente concentrada que pega direto na veia. Tenho procurado ler sobre alguns pintores que me interessam, mas é coisa de iniciante. José Paulo Paz me recomendou um livro, que ele traduziu, que me foi muito útil. ÉLiteratura e Artes Visuais de Mario Praz.
O meu segundo livro, As faces do rio, começou a ser escrito a partir de um impulso que tive ao ver, em um livro, "Ocean Greyness" de Jackson Pollock. Aquele quadro virou uma espécie de leimotiv. Só depois disso é que fui ver outros quadros e comprar livros sobre Pollock. No caso de Yves Klein quando vi a sala dele na Bienal fiquei nas nuvens. Voltei umas cinco vezes naquela sala como que atraído por um campo imantado.
O que vejo em determinados pintores são uns vasos comunicantes com a poesia e um certo sentido espiritual, um arte que toca o campo do sagrado. Em Paul Klee, Kandinsky, Yves Klein e Anish Kapoor eu percebo essa relação profundamente espiritual com a arte. Por isso, escrevi aquele poema chamado Quarteto em K. Com os pintores brasileiros sobre os quais tenho escrito a relação é a mesma. São artistas que me emocionaram, que tocaram uma corda escondida. Acontece com o trabalho de Renina Katz, Paulo Pasta, Niura Bellavinha, Germana Monte-Mór, Nuno Ramos. Com o Rogério Barbosa, pintor que mora em Pouso Alegre, tenho a proximidade da amizade também. Ele fez alguns desenhos muito bons para o meu próximo livro que se chamaMundo mudo. Agora, sinceramente, não saberia dizer porque um quadro de Paulo Pasta me emociona e a de um outro pintor, por exemplo Ianelli, me deixa indiferente.
Nunca procurei nesses escritos me apropriar de procedimentos próprios da pintura. Acho muito difícil, quase impossível. Os procedimentos da pintura são muito mais radicais. Por exemplo, a pintura cubista é muito mais radical e difícil do que uma prosa que pretenda ser cubista. Acho que o trunfo da pintura está naquilo que Klee chama de tornar visível o invisivel, nas relações entre o mundo exterior e o espírito. Acho que Rilke tenha sido o poeta que mais compreendeu pintura e usou de seus procedimentos, principalmente nos Poemas-coisa. Ele era um craque e nós somos uns pernas-de-pau.
Esses poemas que escrevo sobre artes já foram bastante criticados. Meu interesse permanece. São exercícios de admiração, uma maneira de me aproximar da obra. São aquelas aragens do sagrado de que falava Guimarães Rosa.
5 - Que poetas te marcaram mais profundamente?
DONIZETE: A coisa funciona em ciclos. Há poetas que nos influenciam em determinada fase da vida e depois a gente continua admirando, mas sem o mesmo entusiasmo. Acho que minhas influências são basicamente as mesmas de todos da minha geração principalmente Drummond e Murilo Mendes. Um poeta que é pouco citado mas que admiro desde a adolescência é Emílio Moura. Também foi fundamental para mim a leitura de A luta corporal do Ferreira Gullar, ainda nos anos 60. Foi mesmo um alumbramento ao ler poemas como aquele sobre a pêra. Eu acompanhava muito os poetas que eram publicados pelo Suplemento Literário de Minas Gerais como a Henriqueta Lisboa.
Fora os brasileiros, eu gosto muito de W.B. Yeats, Elizabeth Bishop, Eugenio Montale, Ungaretti, dos gregos Kafávis e Seféris. A descoberta mais tardia que fiz foi de Francis Ponge. Para mim, Métodos do Ponge é um livro que retomo sempre. Outro livro que leio e releio é Ascese, de Kazantzákis. Há tantas outras vozes entrelaçadas que acabam constituindo uma espécie de família espiritual.
6 - Que poetas brasileiros contemporâneos você acha mais importantes?
DONIZETE: Há tantos nomes. Eu sou como aquele poema do Álvaro de Campos em que ele simpatiza com tudo. Não sou nada coerente nas minhas escolhas, nem tenho juízos definitivos. Como não sou poeta-crítico tenho a maior liberdade de gostar, sem pensar muito em tendências. Não sou muito chegado em polêmicas e debates.
Há uma boa safra de poetas jovens como Paulo Ferraz, Tarso de Melo, André Luiz Pinto, Rodrigo Petrônio, todos com menos de 30 anos. Acho que podemos esperar grandes obras deles. Muito já têm mostrado ótimos resultados. O Paulo Ferraz ganhou o prêmio Nascente da USP com um livro muito bom. Ele fez um poema longo De novo nada que é um tour de force. Eu procuro acompanhar a produção deles através das revistas e dos livros que publicam.
Há dois poetas que têm lugar muito especial no meu coração. O José Paulo Paes e a Dora Ferreira da Silva. Ambos muito generosos, com muita sabedoria, e com um caráter nobre. A Dora está muito ativa, tem um livro novo pronto.
Posso estar esquecendo alguns nomes, mas admiro muito o Armando Freitas Filho, o Rubens Rodrigues Torres Filho, Antônio Cícero, Alberto Pucheu, Carlito Azevedo, Claudia Roquette-Pinto, Fábio Weintraub. Tem também o Ruy Proença que considero um poeta extremamente sutil, refinado, imaginativo, com um senso de humor muito particular.
7- Você vê algum elemento aproximativo entre a sua poética e a de Ronald Polito - já que publicaram juntos Pelo Corpo?
DONIZETE: Olha, acho que o que me aproxima do Ronald é uma grande admiração que tenho pelo trabalho dele. Sempre gostei muito da Orides Fontela e acho que o Ronald tem uma poética tão forte quanto a dela. O minimalismo dele tem tutano, tem uma tensão permanente. A maneira como ele trata do corpo, da exasperação do homem dentro desse corpo, me interessa muito. Além disso, desde que li Meu corpo e eu, do René Crevel, fiquei com a idéia de escrever alguma coisa com esse tema. Acho que conseguimos um diálogo interessante numa área de interseção entre duas poéticas diferentes, Interesso-me por poéticas diferentes da minha. Estou fazendo um livro com André Luiz Pinto que chamamos de Litanias. O André tem uma poesia muito diversa da minha, a dele é bastante expressionista e sombria.
Li a entrevista que o Ronald concedeu a você, serviu para conhecer melhor as idéias dele. Agora, não compartilho da extrema negatividade e incomunicabilidade que ele sente. Ele consegue ser muito mais pessimista que eu. O que há de bonito é que os poetas podem se entender acima dessas divergências. Acho que há um afeto, um veio mais forte, que une os poetas mesmo que passem grande parte do tempo discordando.
8- Você poderia apontar alguma mudança na sua poesia de seu primeiro livro Azul navalha (1988) até o último Pelo Corpo (2002)?
DONIZETE: Como dizia o José Paulo Paes, a cara foi ficando pior, mas a poesia, pelo menos, acho que melhorou um pouco. O lirismo passou a ser mais objetivo, mais ligado ao corpo, aos bichos e às coisas do que a instantâneos do quotidiano. Há poucos poemas do primeiro livro dos quais gosto. Ler meus próprios poemas me causa desprazer. São muitas tentativas e poucas vezes sentimos que captamos realmente a poesia. Entretanto, embora busque sempre fazer o melhor, acredito que a poesia é feita também de impurezas, imperfeições e riscos. Minha poesia gosta do que não é poético, dos restos, dos restolhos. Também procuro abrir mão do que considero enfeite ou acessório.
O primeiro livro é mais uma coletânea de poemas de quase uma década. A partir do segundo, procurei trabalhar com projetos mais amarrados. A partir do nome e das epígrafes, procuro criar um campo magnético que atraia os poemas. Não chega a ter um rigor construtivista, uma estrutura arquitetônica muito definida, mas todos os livros têm um eixo. Por isso, nunca mudo os nomes e nem as epígrafes. Seria como tirar as bases do livro.
9 - Seu texto "O poeta em pânico", publicado em Do Silêncio da Pedra, soa como um desabafo. Não lhe parece querer demais conciliar a poesia com o mundo ordinário em que vivemos?
DONIZETE: Você tem razão. Hoje acho que não publicaria aquele texto junto com o livro. O ideal seria publicá-lo em outro veículo. Como não tinha espaço, resolvi colocar como um posfácio. É preciso contextualizar. Na época, final dos nos 80, eu sentia uma espécie de claustrofobia. As editoras eram poucas. Publicar era caríssimo. Hoje, há mais de dez revistas de poesia, antologias, zines, revistas virtuais, sites. Até mesmo na grande imprensa houve uma abertura de espaço. Eu mesmo publiquei poemas no Mais e o Elio Gaspari teve a generosidade de publicar poemas meus na sua coluna que circula em importantes jornais do país. Dentro dos padrões modestos da poesia, a visibilidade hoje é maior. Quem publicou nos anos 90 não sabe como foi complicado ter alguma visibilidade nos 80.
Agora, não tenho ilusões. O conflito da poesia com o mundo em que vivemos é radical. Não poderia ser de outro modo. Não há conciliação possível. O que a poesia pode fazer é renegar permanentemente o utilitarismo do mundo moderno. Pode ser que a gente não mude o mundo, mas pelo menos há uma recusa em ser moldado.
10 - Parafraseando seu poema "Órfico", do livro Pelo Corpo, eu pergunto: vale uma vida, vale uma morte, a poesia?
DONIZETE: Fico na dúvida. Se o resultado for uma obra de qualidade, para o bem da poesia, acho que vale sim. Acontece que estamos sempre na corda bamba, sem certeza de nada. Nunca sabemos se o que escrevemos terá alguma permanência. O jeito é fazer como Orfeu e aceitar o risco.
2 Poemas e "O poeta em pânico" de Donizete Galvão:
FIGOS
cesta de figos maduros
exatos na sua configuração
atente-se para os veios roxos
a camada de pó sobre a pele
tire a áspera membrana:
surge a derme branca
a polpa violácea
florescência íntima
secreta granulação
a maturidade é experimento breve
ontem a base ainda vertia leite
amanhã a carne estará macerada
devore-a agora
na última estação
um dia
ela poderá amanhecer seca
nua
morta
(de A Carne e o tempo)
***
RETRATO DE ARTISTA
Que Deus lhe dê uma raiz bem funda,
para que não o balance o vento das cidades.
Que, para onde quer que vá,
corra ao seu lado o rio de sua aldeia.
Que vagueie exilado,
de cidade em cidade,
de emprego em emprego,
experimentando o gosto do provisório.
Que sua mulher despreze sua obra,
o pai morra sem sua visita
e a filha fique esquizofrênica.
Que lhe caiam os dentes
e lhe cheguem as dores, as colites, úlceras.
Que o ceguem em doze prestações.
Que você sugue dos amigos a alma,
a cultura, as histórias, o bolso
e lhes dê em troca
desprezo e indiferença.
Que colecione despejos,
os proprietários lhe virem o rosto
e os credores batam à sua porta.
Que você se tenha em alta conta,
embora seus sapatos estejam furados
e o presenteiem com roupas usadas.
Que você seja sustentado
pela filantropia de milionárias.
Que gaste em vinho o salário do irmão
e caia na calçada, sangre e precise de ajuda.
Que o atormentem a ânsia, remorsos, trovões.
Que você tenha olhos só para si.
Que mendigue a atenção dos jornais,
busque em vão por críticas e resenhas,
espere horas em saletas de editoras
e cobre elogios de quem chega.
Que de sua pele tão fina,
nasça uma carapaça anti-humana,
ovo com casca de aço,
onde baila em clara
a tenra e frágil gema.
(de A carne e o tempo)
Trechos de "O poeta em Pânico", do livro Do silêncio da pedra
A poesia, além de inútil, é também indesejada.
O poeta, entretanto, insiste em escrever seus poemas. Não lhe resta outra alternativa. Poderia buscar o suicídio, a santidade, o vício: estas "outras tantas formas da falta de talento", de que falou Cioran. Está preso a uma obsessão nunca sublimada. Quer, através da língua, assegurar a permanência enquanto tudo se desfaz. Usa de artifícios, filtra e depura para transformar o desprezo, a humilhação e a decomposição do corpo e da mente em matéria poética. Entre tantos indiferentes, deve haver uns poucos que terão ouvidos para essa outra voz.
Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 17/2/2003
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