domingo, 31 de outubro de 2010

Entrevista com Leila Miccolis

O Espaço Ecos   entrevista a  poeta, escritora de cinema, teatro e TV Leila Miccolis
Entrevista gentilmente concedida à Vânia Moreira Diniz
1 - Leila, o seu poder criativo é imenso, desde quando descobriu esse dom?
R -  Vânia querida, deixa eu dizer primeiro que não considero a criatividade um dom privilegiado; acho que o criativo existe em todos; desenvolvê-lo nada mais é do que um processo cultural, que necessita treino, motivações e exercício diário; minha mãe, como  diretora de escola primária,  sabia disso. Era uma mulher extraordinariamente comum: maravilhosamente sábia.  Então, desde muito pequena, fui tida como garota prodígio, mas, na verdade, devo a “Dona Corália Miccolis” a lição de que todos somos iguais em termos de inteligência, embora poucos tenham condições favoráveis para expandi-la, como se deu no meu caso. Minha mãe incentivou-me muito: lia muitas histórias para mim, contava muitos casos, inclusive da família (que, por parte dela, era Barata Ribeiro), e enquanto ouvia, meu imaginário viajava. Aos três anos de idade fiz minha primeira quadrinha para o meu gato, o Marquês de Baratol Rabudo, e, com a mesma idade, espantei certa vez o ônibus lotado em que viajávamos, ao apontar uma árvore, dizendo, encantada: — mamãe, veja que árvore “fondosa”... O r  não saiu, mas a principal noção, que ultrapassava a gramática, o literário e entrava pela seara da antropologia e da ecologia, a principal noção, repito, já estava semeada e começava a brotar...
2 - Conseguiria abandonar essa força de criar e viver uma vida diferente, longe  de tudo que já fez até hoje?
R - Acho que a esta altura da vida, o que eu tinha que abandonar, já abandonei, que era a advocacia. Agora quero mais é aprofundar-me na área que escolhi – por isso estou fazendo mestrado em Ciência da Literatura – Teoria Literária – na UFRJ (creio que minhas aulas online de roteiro de poesia e de novela de televisão ganharão mais em densidade e método). No caso de alguma grande adversidade, se eu tivesse de largar tudo, provavelmente o faria, porque não tenho tendências a ser mártir; no entanto, com toda certeza, me sentiria bastante incompleta e insatisfeita.
3 - Como encaminhou seus passos para a literatura e chegou ao teatro, cinema, rádio, televisão?
R - Quando deixei de exercer a advocacia para escrever tempo integral percebi que não poderia viver de literatura apenas fazendo poesia, em meu país; precisei então enveredar  por outras áreas. Eu já ganhara muitos concursos literários, mas eles só me valiam como bagagem cultural, ou como currículo dentro de áreas restritas e tradicionais. Resolvi então, em paralelo, me iniciar em outras modalidades, e a minha primeira tentativa neste sentido foi escrever para revistas de histórias em quadrinhos – um grande aprendizado, que me ajudou bastante, inclusive a entender que muitos caminhos aparentemente dissociados da literatura, não o são, na prática (o pós-modernismo nos deu a capacidade de costurar, por hipertextos, fragmentos e idéias à primeira vista totalmente desconectados...). Quando Henrique Martins, na época (1983) diretor de núcleo do “Caso Verdade” da Globo,  me perguntou como eu tinha escrito um primeiro roteiro para TV como aquele (que acabou inclusive sendo comprado), eu respondi, meio confusa: “não sei exatamente a resposta, mas se você quer saber o que faço na vida hoje,  eu lido com história em quadrinhos”. E ele concluiu: — “Então é isso. Está explicado”.
4 - Quais foram os autores que começaram a influência na sua literatura?
R - Fazendo minhas as palavras do poeta Lêdo Ivo, “não tive influências, mas convivências”... (risos). Comigo, sempre funcionou o seguinte sistema: ler muito e esquecer tudo o que li, na hora de escrever. Lógico que, latente, ficou muito das leituras, que é a terra fértil, viva, mãe de toda colheita; mas o alimento que me nutriu foi reciclado, ou melhor, digerido e metabolizado de forma exclusiva, pessoal. Sou autodidata até pelo meu temperamento irreverente e questionador, incapaz de se sujeitar, cômoda e acomodadamente, a obedecer padrões autoritários que levam a cânones estilísticos consagrados. Gosto de ousar, de experimentar, mexo em um texto meu à exaustão, até ele ficar do jeito que eu quero; e desmonto-o todo, se, tempos depois, ele me parecer deslocado. Há poemas meus de três a cinco versos (em poesia sou bem minimalista), que ficaram anos sendo refeitos. Por outro lado, sendo meu trabalho cultural do tipo aglutinador, passo a maior parte do tempo lendo muito textos inéditos, ainda pouco ou nada compromissados com “padrões de qualidade” preestabelecidos, o que me possibilita perceber o quanto a linguagem, mais visivelmente a poética, pode senão romper pelo menos denunciar a relação de poder do discurso, desarticulando-o,  nem que seja pela ambigüidade e pelo efeito conotativo das suas imagens. É principalmente esta literatura – sempre emergente, em qualquer época em que ela surge – que me mostra o quanto a literatura é vital para sacudir construtivamente o mundo, a fim de fazer com que ele melhore, ao debater seus limites, limitações, jargões, preceitos e preconceitos. Tenho muito carinho pelos poetas ainda anônimos – uma plêiade de estrelas de imensa grandeza –, e admiro muitos deles, mais às vezes até do que alguns nomes que a crítica aplaude e a intelectualidade reverencia.
5 - Seu acervo literário é constituído de versáteis e brilhantes obras. Acha que o reconhecimento público tem compensado  a dificuldade  financeira que todo escritor possui na hora de publicar suas obras?
R - Embora sem público um escritor não se realize, não escrevo com o fim primordial de ser reconhecida. Se dependesse disso, teria desistido no começo de carreira, porque o que mais ouvi foi desestímulo, do tipo: “uma mulher não escreve poesia nestes moldes”, como se a poesia (ou as mulheres) tivesse fôrmas... Se minha obra é vasta, se escrevo tanto, não é propriamente por mérito, mas porque não sei ser feliz sem este exercício diário, fascinante, em que se mergulha no corpo do mundo e na alma do outro; não quero dizer com isso, no entanto, que o público não seja importante, de modo algum; sentir a receptividade do que se escreve é imprescindível como termômetro e critério de avaliação dentro das leis do mercado, às quais toda obra de arte está de certa forma veiculada. O que quero dizer, porém, é que, mesmo que ninguém gostasse ou lesse o que escrevo, eu simplesmente continuaria escrevendo.
6 - Você que publica tantos autores, tem convicção que a internet facilitou o escritor brasileiro que apenas começa ou que não teve oportunidade?
R - Sem dúvida facilitou. A Internet é uma grande e bela vitrine, que põe em evidência o que está acontecendo neste momento na Turquia, no México, em Londres ou no Japão. Esta simultaneidade, esta possibilidade de comparação de culturas, me delicia; entre eu e a rede foi paixão à primeira vista, ou melhor, ao primeiro clique. Sou muito mais lida agora, pelo mundo afora, do que antes, já que, em geral,  o livro no Brasil tem tiragens muito limitadas. No entanto, principalmente para quem se inicia no ciberespaço, essas oportunidades são mal aproveitadas, porque o artista, infelizmente, já introjetou o slogan reducionista e boicotador de que “escritor só sabe escrever”. Como em nossa terra não temos agentes literários para os autores ainda não reconhecidos pela mídia, o autor iniciante acaba trilhando a falsa lógica de que, aparecendo em milhares de sites, vai ser lido milhares de vezes. No entanto, porque a Literatura não é uma ciência exata, como a matemática, esta estratégia aparentemente perfeita produz efeitos justamente contrários, ou seja, o autor apaga-se em meio a tantos que pensam e agem igualmente como ele. Às vezes, com um agravante: como, em geral, escolhe dez a quinze poemas para serem seus carros-chefes, seus cartões de visita, os mesmos textos aparecem em todas as milhares de páginas; por melhor que seja o poeta, a mensagem sub-reptícia depois de lermos o mesmo poema dez vezes é de que o autor  tem pouca imaginação ou, na melhor das hipóteses, de que ele possui uma produção numericamente pobre ou bissexta. Na era tecnológica, o escritor que quer usar a máquina e a tecnologia em benefício próprio, não pode “apenas saber escrever”; para ser o agente de si mesmo, precisa ser competente também nesta área, inteirar-se de algumas estratégias de marketing  adequadas ao processo de autogerenciamento, e ter coragem para escolher a que melhor se adapte à sua obra, à sua imagem, e/ou ao seu temperamento. E entender um pouco, também de html... Só assim ele pode aparecer em meio à multidão, sobressaindo-se pelo que escreve.
7 - Blocos é um potencial, mas  sei que dedica  a ele a sua vida,  como tudo começou ?
R - Começou com a editora (em 91), algum tempo depois foi também  jornal e revista impressos, mas, depois que entrou na net, virou meu “xodó”, porque pela web posso expandir o trabalho coletivo que já faço há tantos anos, e também mostrar um painel bem mais amplo das tendências contemporâneas. Blocos Online <http://www.blocosonline.com.br> tem cerca de 18 mil páginas, mais de 7.000 autores participantes (em poesia, desde poetas épicos e sonetistas até representantes da transvanguarda brasileira), e a regularidade da visitas mensais de mais de 60 países. Simultaneamente à divulgação de autores inéditos, ou semi-inéditos, nosso Conselho Administrador constitui-se de nomes de intelectuais reconhecidos internacionalmente, inclusive de Arnaldo Niskier, atual Secretário de Cultura do Estado. É muito gratificante chegarmos onde estamos, não pela importância ou pelo “status”, mas por estarmos efetivamente contribuindo para um mundo melhor, através não só da palavra, mas também da poiesis – da ação da poesia.
8 - E a editora  como funciona dentro de blocos.?
R - A editora é uma ramificação da minha atividade de escritora, e, portanto de leitora; mas não a tenho como minha ocupação principal. Urhacy Faustino e eu temos plena consciência de sermos escritores em primeiro lugar, em primeiro plano, acima de tudo, sempre. Talvez por isso tenhamos uma editora tão sui generis, e tão pouco comercial, pelo menos até agora.
9 - Tem valido a pena os momentos de desgaste, cansaço e as dificuldades que enfrenta para que esse sonho se concretize todos os dias?
R - Há horas em que acho o desgaste maior do que o prazer, e aí questiono muito o modo pelo qual estou me conduzindo ou conduzindo meus ideais; mas, volto a dizer: mesmo que eu chegasse à conclusão de que não adiantaria continuar, creio que não pararia,  porque escrever para mim é visceral; deixar de banhar-me nesta fonte, seria como que arrancar a minha alegria de viver. Por isso, nas horas de maior desânimo, conjugo dois poetas de dois tempos bem diferentes: Gonçalves Dias e Gonzaga Jr. (Gonzaguinha): “Viver é luta renhida/ viver é lutar” (...) “E sem o seu trabalho/ um homem não tem honra/ e sem a sua honra/ se morre/ se mata/ Não dá pra ser feliz...”. Costumo reagir rápido: enxugo as lágrimas, escolho novas táticas, e continuo a guerrear.
10 - Gostaria muito que explicasse o que são os celulivros?  É um projeto  maravilhoso que já se transformou em realidade mas poderia falar exatamente sobre eles?
R - Celulivros são livros divulgados através da telefonia celular. É mais uma porta que se abre para a poesia. A iniciativa e o projeto são do Luiz Mendonça e a realização da Mendonça e Müller Consultoria. O funcionamento é simples: o assinante que contrata este serviço escolhe um poeta e, pelo prazo de um mês ou de 45 dias, dependendo do plano que mais lhe convir, ele recebe diariamente um poema daquele autor. É um esquema muito interessante: barato para quem o assina (R$ 17 e 22,00, podendo interromper a qualquer momento), e bem diferente para quem o recebe – desde que goste de poesia, não há como não amar. Também alcança o pessoal mais jovem, que usa o celular para games e um mundo de atividades interativas. Ou seja: é uma lembrança que agrada a todas as idades.  O envio é feito através de uma mensagem de texto, pequena, um “torpedo”... só que poético.
11 - Como poderia ser divulgado para que um mundo maior e seus próprios leitores tomassem conhecimento e pudessem adquiri-lo?
R - Através do site do Celuler: <http://www.celuler.com..br>. Lá estão o formulário, o nome dos autores, e, inclusive, uma “degustação”, ou seja, uma provinha com seis poemas de cada um deles, inclusive meus.
12 - Acha que os celulivros podem substituir de alguma maneira a edição de um livro?
R
 - Não, acho que nada “ameaça” o livro, nem compete com ele, porque são mídias diferentes e formas diversas de se entrar em contato com o texto.  A intenção é ampliar, divulgar, conquistar mais público até para os livros, em vez de reduzir a leitura. Estou feliz neste fim de ano por participar de um projeto que LIGA mais a poesia ao cotidiano das pessoas.
Vânia - Leila querida, obrigada por sua entrevista, parabéns pelo fascinante trabalho que faz proporcionando a realização de tantos sonhos.
Leila Miccolis - Eu quem agradece, Vânia, por tudo o que você tem realizado em prol da cultura brasileira.

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